- NUNO LOBO ANTUNES, in "Vida em Mim""A vida é uma viagem, todos o sabemos. Navegação à vista que a rota não foi prevista e o mapa se vai revelando à medida que o tempo caminha. É desconhecido o destino, são incógnitos os portos, escassas as enseadas onde encontrar abrigo. O barqueiro tem uma venda, e cego, o barco prossegue arrastado por ventos e marés, ferido aqui e ali, por correntes e escolhos. Continuamos viagem sem saber bem o que nos guia e que porto demandamos. Pela minha parte, tento encontrar coerência no meu percurso, o sentido oculto, a harmonia que se deverá esconder por detrás de tudo."
terça-feira, 27 de dezembro de 2011
"Monólogo a várias vozes"
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Nuno Lobo Antunes
domingo, 4 de dezembro de 2011
Canção de alterne
E por tantas vezes dançamos todos
sem explicações coerentes ao som de uma privada canção de alterne que
alternadamente empurra um de dois contra o outro. Empurra-se depressa porque
longe estamos de apreciar vagarosamente o que mais queremos, se é que
se aprecia.
Despidos do velho compromisso
encontram-se tantos de luz apagada porque às claras já nada se entende. Pois
que visto o recreio de fora a sentença não muda.
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365 à luz do corredor
Dali para o corredor onde a alegria e a malícia por vezes cresceram juntas podem-se recriar imagens sem conta. Desde o corpo acolchoado sobre braços voluntários, a mãos que tocavam o que seguia em frente, não deixando passar com descrição os sucessivos regressos e pacíficos abandonos de alguém com um compromisso na agenda.
Cedo, muito cedo começaram as viagens de deleite esfusiante às quais qualquer comparação faria o concorrente abandonar uma corrida em desvantagem. Das noites longas em curta duração saíram desejos por cumprir, diálogos a passear sobre o sono e o toque seguro entre quem não quer ter mais para onde ir.
Nesse corredor tudo se mistura. É o espelho do que foi, reflectido no lençol por enrugar que há-de sentir, talvez, o pulsar do contacto atrapalhado pelo que se diz não sentir.
Cedo, muito cedo começaram as viagens de deleite esfusiante às quais qualquer comparação faria o concorrente abandonar uma corrida em desvantagem. Das noites longas em curta duração saíram desejos por cumprir, diálogos a passear sobre o sono e o toque seguro entre quem não quer ter mais para onde ir.
Nesse corredor tudo se mistura. É o espelho do que foi, reflectido no lençol por enrugar que há-de sentir, talvez, o pulsar do contacto atrapalhado pelo que se diz não sentir.
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Contabilidade da emoção
"Brincávamos a cair nos braços um do outro, como faziam as actrizes nos filmes com o Marlon ... Brando, e depois suspirávamos e ríamos sem saber que habituávamos o coração à dor. Queríamos o amor um pelo outro sem hesitações, como se a desgraça nos servisse bem e, a ver filmes, achávamos que o peito era todo em movimento e não sabíamos que a vida podia parar um dia. Eu ainda te disse que me doíam os braços e que, mesmo sendo o rapaz, o cansaço chegava e instalava-se no meu poço de medo. Tu rias e caías uma e outra vez à espera de acreditares apenas no que fosse mais imediato, quando os filmes acabavam, quando percebíamos que o mundo era feito de distância e tanto tempo vazio, tu ficavas muito feminina e abandonada e eu sofria mais ainda com isso. Estavas tão diferente de mim como se já tivesses partido e eu fosse apenas um local esquecido sem significado maior no teu caminho. Tu dizias que se morrêssemos juntos entraríamos juntos no paraíso e querias culpar-me por ser triste de outro modo, um modo mais perene, lento, covarde. Eu amava-te e julgava bem que amar era afeiçoar o corpo ao perigo. Caía eu nos teus braços, fazias um bigode no teu rosto como se fosses o Marlon Brando. Eu, que te descobria como se descobrem fantasias no inferno, não queria ser beijado pelo Marlon Brando e entrava numa combustão modesta que, às batidas do meu coração, iluminava o meu rosto como lâmpada falhando a minha mãe dizia-me, Valter tem cuidado, não brinques assim, vais partir uma perna, vais partir a cabeça, vais partir o coração. E estava certa, foi tudo verdade."
- VALTER HUGO MÃE, in "Contabilidade"
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terça-feira, 8 de novembro de 2011
...
I've missed you today.
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segunda-feira, 7 de novembro de 2011
«Like that's gonna be any easier»
"People are really romantic about the beginnings of things. Fresh start. Clean slate. A world of possibility. But no matter what adventure you're embarking on, you're still you. You bring you into every new beginning in your life, so how different can it possibly be.
It's all anybody wants, right? Clean slate. A new beginning. Like that's gonna be any easier. Ask the guy pushing the boulder up the hill. Nothing's easy about starting over. Nothing at all."
It's all anybody wants, right? Clean slate. A new beginning. Like that's gonna be any easier. Ask the guy pushing the boulder up the hill. Nothing's easy about starting over. Nothing at all."
- Quote from GREY'S ANATOMY
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(Guillaume!)
Podia dizer-te daqui quantas vezes te coloquei na corda bamba, mentalmente criando episódios em que farias por eu te abandonar. Ou seria eu, enfadada por medidas sempre iguais do comportamento que não pedi.
Farta de fingir que estou a trabalhar, sorrio para ti. Continuas apegado ao teu brinquedo favorito, qual aceso adolescente fora de tempo e por isso não me vês. Ainda hoje não sei do que sei mas acredito em ti. Continuo com os lábios arqueados embalada nesse sentimento adorável de te ter não me separando da sensação de que há quem me queira mais do que por aqui.
E descuido-me baixinho:
- Guillaume.
- O quê?
Levantaste o olhar para mim. Eu levei as mãos à face e encostei-me a elas com uma ligeira inclinação, nunca me desviando de ti. E ignorando o que disse para que ignorasses o que ouviste, sorri e afirmei com a maior certeza do mundo:
- Amo-te.
Farta de fingir que estou a trabalhar, sorrio para ti. Continuas apegado ao teu brinquedo favorito, qual aceso adolescente fora de tempo e por isso não me vês. Ainda hoje não sei do que sei mas acredito em ti. Continuo com os lábios arqueados embalada nesse sentimento adorável de te ter não me separando da sensação de que há quem me queira mais do que por aqui.
E descuido-me baixinho:
- Guillaume.
- O quê?
Levantaste o olhar para mim. Eu levei as mãos à face e encostei-me a elas com uma ligeira inclinação, nunca me desviando de ti. E ignorando o que disse para que ignorasses o que ouviste, sorri e afirmei com a maior certeza do mundo:
- Amo-te.
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segunda-feira, 31 de outubro de 2011
Era isto...
A casa vazia e o intelecto quieto.
Já pedi que me deixassem as mensagens no correio, as vozes à porta. De onde me levanto não trago sombra sequer.
Era isto
A falta de balanço de que já não me lembrava
A carcomida vontade que um dia já tinha vestido.
Hoje já não te lembras de nada, como se
Como se os dias se condensassem em nuvens que voam para longe.
Já pedi que me deixassem as mensagens no correio, as vozes à porta. De onde me levanto não trago sombra sequer.
Era isto
A falta de balanço de que já não me lembrava
A carcomida vontade que um dia já tinha vestido.
Hoje já não te lembras de nada, como se
Como se os dias se condensassem em nuvens que voam para longe.
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sábado, 29 de outubro de 2011
«Estás preparada?»
"(Prepara-te bem porque daqui a pouco)
e por mais que quisesses tentar já nem forças para tentar, simplesmente
Não te lembras
Não te lembras
Podes continuar a circular, tocar nas coisas, avaliar o peso dos objectos,
olhar mil vezes fotografias que te mostram, dizem-te nomes que não reconheces, simplesmente
Não reconheces
(Estás preparada?)"
- RODRIGO GUEDES DE CARVALHO, in "Mulher em Branco"
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Rodrigo Guedes de Carvalho
«Velhas e cansadas de correr»
"O amor não tem portas que possamos abrir e fechar, nem passagens secretas para um sótão onde possamos fazer férias dele. Toma conta de tudo em nós, envolve-nos como um lençol de tédio, sedoso, infindo. Ninguém fala deste tédio sublime, tão contrário à acção e à eficácia, imóvel inimigo do progresso do mundo. Só no trono do sonho, iluminado e funesto, o amor interessa. Prolongada, a vida torna-se demasiado curta e o amor ganha o ritmo da chuva que bate leve, levemente.
Habituámo-nos a tratar os amores como electrodomésticos: quando se escangalham, vamos ao supermercado comprar um novo, igualzinho ao que o outro era. Consertar? Não compensa: o arranjo sai caro, além de que nunca se sabe muito bem onde procurar a peça que falta. Substituímos a eternidade pela repetição, e o mundo começou a tornar-se monótono como uma lição de solfejo. Tememos a maior das vertigens, que é a da duração. Mas no fim de cada sucesso há um cemitério como o de Julieta e Romeu, apenas com a diferença da aura, que é afinal tudo. As pessoas morrem cada vez mais velhas e cansadas de correr, e os seus cadáveres tensos soçobram de ridículo sobre a terra das suas efémeras conquistas."
- INÊS PEDROSA, in "Nas Tuas Mãos"
Habituámo-nos a tratar os amores como electrodomésticos: quando se escangalham, vamos ao supermercado comprar um novo, igualzinho ao que o outro era. Consertar? Não compensa: o arranjo sai caro, além de que nunca se sabe muito bem onde procurar a peça que falta. Substituímos a eternidade pela repetição, e o mundo começou a tornar-se monótono como uma lição de solfejo. Tememos a maior das vertigens, que é a da duração. Mas no fim de cada sucesso há um cemitério como o de Julieta e Romeu, apenas com a diferença da aura, que é afinal tudo. As pessoas morrem cada vez mais velhas e cansadas de correr, e os seus cadáveres tensos soçobram de ridículo sobre a terra das suas efémeras conquistas."
- INÊS PEDROSA, in "Nas Tuas Mãos"
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sábado, 22 de outubro de 2011
Meaningful
I love to hear jazz, blues and soul. By the silent night, the same way it absorbs me while it is being played, the simple image of you appears to invite me losing track on a trip we had never planned.
Do you know how many times am I lost in meaningless things, looking at the window and having the thought of you warming me?
Do you know how many times am I lost in meaningless things, looking at the window and having the thought of you warming me?
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sexta-feira, 21 de outubro de 2011
Repetição
Dos que mais gostei de escrever:
Ela estava completamente alheada do que a rodeava. Só a brisa ainda a fazia sentir-se acordada. Enquanto as ondas rebentavam, revoltas, e as crianças corriam em direcção à meta, ela permanecia imóvel, fitando o horizonte, a linha tão imaginária quanto a sua felicidade.
Havia dias desde o último sorriso que se lembrava de esboçar: natural, sincero, espontâneo. Lembra-se bem: ele olhou para ela, afastou a madeixa de cabelo que lhe escondia a expressão e disse, no tom mais apaixonado que ela lhe conhecia, que a amava. Depois, colou os seus lábios à sua pele num beijo demorado e ternurento. Foi aí que sorriu, imediatamente antes de ele se afastar.
Foi desde essa noite, em que o frio característico se opunha ao calor dos sentimentos, que ela se encheu do maior vazio que já havia experimentado. Passava os dias ali, na praia, na esperança de ter o mais curto pousar de olhos sobre a figura dele. Em boa verdade, não sabia o que fazer se o visse, se devia falar, dirigir-se a ele ou continuar o que ele começou.
O adeus. Foi o que de mais ingrato ele lhe poderia oferecer. Naquele momento, sentiu uma dor desmedida na voz dele e por muito que agora se arrependesse por não ter tentado impedi-lo, na altura não foi sequer capaz de pensar. A dura realidade tomou-a de assalto e ela sucumbiu a um terrível estado de incredulidade. E, na impossibilidade de se debater, viu-o partir.
Agora era tarde, mas ela era incapaz de deixar libertar o sofrimento que ele lhe provocou. Porque se assim fosse, em breve ela esqueceria o rosto, o cheiro, a imagem, os sentimentos. Deixar-se sofrer obrigava-a a recordar cada momento que haviam partilhado. E assim, tudo o que restava da sua história era mais lentamente apagado. Os contornos iriam permanecer, tempo nenhum os poderia apagar, mas tudo o resto, todos os pormenores, mais ou menos importantes, iriam involuntariamente abandoná-la.
E ele? Seria ele indiferente a todos os detalhes que dela pudesse perder? Estaria, ou não, disposto a deixá-la afogada na maior das dores? No maior dos sofrimentos? Até onde estaria ele disposto a permitir o fim do que nunca deveria sequer ter terminado? Não, ela não fazia a mais pequena ideia. E sem querer, estas dúvidas ocupavam-na durante todo o dia, a qualquer que fosse a hora.
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Grey's Anatomy
"There's a reason I said I'd be happy alone. It wasn't 'cause I thought I'd be happy alone. It was because I thought if I loved someone, and then it fell apart, I might not make it. It's easier to be alone. Because what if you learn that you need love? And then you don't have it? What if you like it? And lean on it? What if you shape your life around it? And then... it falls apart? [...] Losing love is like organ damage. [...]"
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02/04
Apresentado em fragmentos:
Dói-me o corpo da distância, a pele inundada de saudades.
[...]
Quando se concretiza a utopia que descrevem os livros, o sentimento que afasta o nosso papel de um monólogo, sentimo-nos completos. Estou inteira, nenhum fragmento se prende ao passado porque me reuniste no presente.
[...]
Diz-me se é em mim que vês a «cidade onde o amor encontra as suas ruas». De imediato, digo-te que a vejo em ti sem hesitações ou amarguras que me atropelem.
[...]
[...]
Quando se concretiza a utopia que descrevem os livros, o sentimento que afasta o nosso papel de um monólogo, sentimo-nos completos. Estou inteira, nenhum fragmento se prende ao passado porque me reuniste no presente.
[...]
Diz-me se é em mim que vês a «cidade onde o amor encontra as suas ruas». De imediato, digo-te que a vejo em ti sem hesitações ou amarguras que me atropelem.
[...]
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terça-feira, 18 de outubro de 2011
10
Daqui a 2 seriam 12.
Nesses dois e depois, estaria muito feliz.
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«Inventa o gosto insípido»
"Vai passar, tu sabes que vai passar. Talvez não amanhã, mas dentro de uma semana, um mês ou dois, quem sabe? O verão está ai, haverá sol quase todos os dias, e sempre resta essa coisa chamada “impulso vital”. Pois esse impulso às vezes cruel, porque não permite que nenhuma dor insista por muito tempo, te empurrará quem sabe para o sol, para o mar, para uma nova estrada qualquer e, de repente, no meio de uma frase ou de um movimento te supreenderás pensando algo como “estou contente outra vez”. Ou simplesmente “continuo”, porque já não temos mais idade para, dramaticamente, usarmos palavras grandiloqüentes como “sempre” ou “nunca”. Ninguém sabe como, mas aos poucos fomos aprendendo sobre a continuidade da vida, das pessoas e das coisas. Já não tentamos o suicidio nem cometemos gestos tresloucados. Alguns, sim - nós, não. Contidamente, continuamos. E substituimos expressões fatais como “não resistirei” por outras mais mansas, como “sei que vai passar”. Esse o nosso jeito de continuar, o mais eficiente e também o mais cômodo, porque não implica em decisões, apenas em paciência.
Claro que no começo não terás sono ou dormirás demais. Fumarás muito, também, e talvez até mesmo te permitas tomar alguns desses comprimidos para disfarçar a dor. Claro que no começo, pouco depois de acordar, olhando à tua volta a paisagem de todo dia, sentirás atravessada não sabes se na garganta ou no peito ou na mente - e não importa - essa coisa que chamarás com cuidado, de “uma ausência”. E haverá momentos em que esse osso duro se transformará numa espécie de coroa de arame farpado sobre tua cabeça, em garras, ratoeira e tenazes no teu coração. Atravessarás o dia fazendo coisas como tirar a poeira de livros antigos e velhos discos, como se não houvesse nada mais importante a fazer. E caminharás devagar pela casa, molhando as plantas e abrindo janelas para que sopre esse vento que deve levar embora memórias e cansaços.
Contarás nos dedos os dias que faltam para que termine o ano, não são muitos, pensarás com alívio. E morbidamente talvez enumeres todas as vezes que a loucura, a morte, a fome, a doença, a violência e o desespero roçaram teus ombros e os de teus amigos. Serão tantas que desistirás de contar. Então fingirás - aplicadamente, fingirás acreditar que no próximo ano tudo será diferente, que as coisas sempre se renovam. Embora saibas que há perdas realmente irreparáveis e que um braço amputado jamais se reconstituirá sozinho. Achando graça, pensarás com inveja na largatixa, regenerando sua própria cauda cortada. Mas no espelho cru, os teus olhos já não acham graça.
Tão longe ficou o tempo, esse, e pensarás, no tempo, naquele, e sentirás uma vontade absurda de tomar atitudes como voltar para a casa de teus avós ou teus pais ou tomar um trem para um lugar desconhecido ou telefonar para um número qualquer (e contar, contar, contar) ou escrever uma carta tão desesperada que alguém se compadeça de ti e corra a te socorrer com chás e bolos, ajeitando as cobertas à tua volta e limpando o suor frio de tua testa.
Já não é tempo de desesperos. Refreias quase seguro as vontades impossíveis. Depois repetes, muitas vezes, como quem masca, ruminas uma frase escrita faz algum tempo. Qualquer coisa assim:
- … mastiga a ameixa frouxa. Mastiga , mastiga, mastiga: inventa o gosto insípido na boca seca …"
- CAIO FERNANDO ABREU
Claro que no começo não terás sono ou dormirás demais. Fumarás muito, também, e talvez até mesmo te permitas tomar alguns desses comprimidos para disfarçar a dor. Claro que no começo, pouco depois de acordar, olhando à tua volta a paisagem de todo dia, sentirás atravessada não sabes se na garganta ou no peito ou na mente - e não importa - essa coisa que chamarás com cuidado, de “uma ausência”. E haverá momentos em que esse osso duro se transformará numa espécie de coroa de arame farpado sobre tua cabeça, em garras, ratoeira e tenazes no teu coração. Atravessarás o dia fazendo coisas como tirar a poeira de livros antigos e velhos discos, como se não houvesse nada mais importante a fazer. E caminharás devagar pela casa, molhando as plantas e abrindo janelas para que sopre esse vento que deve levar embora memórias e cansaços.
Contarás nos dedos os dias que faltam para que termine o ano, não são muitos, pensarás com alívio. E morbidamente talvez enumeres todas as vezes que a loucura, a morte, a fome, a doença, a violência e o desespero roçaram teus ombros e os de teus amigos. Serão tantas que desistirás de contar. Então fingirás - aplicadamente, fingirás acreditar que no próximo ano tudo será diferente, que as coisas sempre se renovam. Embora saibas que há perdas realmente irreparáveis e que um braço amputado jamais se reconstituirá sozinho. Achando graça, pensarás com inveja na largatixa, regenerando sua própria cauda cortada. Mas no espelho cru, os teus olhos já não acham graça.
Tão longe ficou o tempo, esse, e pensarás, no tempo, naquele, e sentirás uma vontade absurda de tomar atitudes como voltar para a casa de teus avós ou teus pais ou tomar um trem para um lugar desconhecido ou telefonar para um número qualquer (e contar, contar, contar) ou escrever uma carta tão desesperada que alguém se compadeça de ti e corra a te socorrer com chás e bolos, ajeitando as cobertas à tua volta e limpando o suor frio de tua testa.
Já não é tempo de desesperos. Refreias quase seguro as vontades impossíveis. Depois repetes, muitas vezes, como quem masca, ruminas uma frase escrita faz algum tempo. Qualquer coisa assim:
- … mastiga a ameixa frouxa. Mastiga , mastiga, mastiga: inventa o gosto insípido na boca seca …"
- CAIO FERNANDO ABREU
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domingo, 16 de outubro de 2011
Daqui a nada?
Daqui a nada conto-te porquê.
Abro a ponta esquerda do laço, deixo de preferir que adivinhes e passo as palavras para o meu lado.
Dói-me esconder essas palavras, fechar-me em cinco dobras que me encobrem no que fica por dizer. Sem sal, fico-me no canto por baixo de emoções escondidas que estás por conhecer. Proibi-me de te cansar a ouvir o que sou fora das nossas portas.
E estranho, estranho como alguém que prefere as palavras como forma primordial de expressão, passa a esconder-se entre e atrás delas, na esperança de que a não observem do alto da sua confiança muito tremule.
Este controlar do sentir facilmente se pode tornar numa tarefa apetecível, mas até que ponto? Deixar-se levar sabe tão bem. Sabe… a abraços matinais que saem de uma noite passada entre lençóis.
Mas quem sabe quanto tempo é o tempo desse «daqui a nada»?
Abro a ponta esquerda do laço, deixo de preferir que adivinhes e passo as palavras para o meu lado.
Dói-me esconder essas palavras, fechar-me em cinco dobras que me encobrem no que fica por dizer. Sem sal, fico-me no canto por baixo de emoções escondidas que estás por conhecer. Proibi-me de te cansar a ouvir o que sou fora das nossas portas.
E estranho, estranho como alguém que prefere as palavras como forma primordial de expressão, passa a esconder-se entre e atrás delas, na esperança de que a não observem do alto da sua confiança muito tremule.
Este controlar do sentir facilmente se pode tornar numa tarefa apetecível, mas até que ponto? Deixar-se levar sabe tão bem. Sabe… a abraços matinais que saem de uma noite passada entre lençóis.
Mas quem sabe quanto tempo é o tempo desse «daqui a nada»?
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_ _ _ _
Amor
a-m-o-r
a-mor
mor-a onde?
a-m-o-r
a-mor
mor-a onde?
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«Transição»
Às tantas esquece-se a pastilha na boca. Voa o pensamento (milhares de pensamentos) para cruzamentos que não aparecem no mapa, como hipóteses apresentadas antes que o tempo as pudesse prever.
Perante a multidão, o corpo comporta-se como verdadeiro calabouço de onde a vontade não consegue escapar. Tenta-se. Tenta-se de facto. Vê-se a vontade debatendo-se contra grades velhas, rugas de ferrugem e calos sobrepostos, atirando-se até contra paredes gastas por fendas escavadas pela luta inglória. Não há nada que a faça libertar-se, e se estiver para vir parece estar muito longe.
Encontra-se a pequena exalando pingos de esforço, imóvel quando a palavra é «transição». E até este momento nenhum estímulo provoca mudanças de estado ao corpo que a prende. Pois uma palavra não consegue esgueirar-se por entre os lábios carnudos a cor de romã pincelados e os olhos apresentam-se como espelhos da multidão que a rodeia e insensíveis ao reboliço que ali vai no interior.
Perante a multidão, o corpo comporta-se como verdadeiro calabouço de onde a vontade não consegue escapar. Tenta-se. Tenta-se de facto. Vê-se a vontade debatendo-se contra grades velhas, rugas de ferrugem e calos sobrepostos, atirando-se até contra paredes gastas por fendas escavadas pela luta inglória. Não há nada que a faça libertar-se, e se estiver para vir parece estar muito longe.
Encontra-se a pequena exalando pingos de esforço, imóvel quando a palavra é «transição». E até este momento nenhum estímulo provoca mudanças de estado ao corpo que a prende. Pois uma palavra não consegue esgueirar-se por entre os lábios carnudos a cor de romã pincelados e os olhos apresentam-se como espelhos da multidão que a rodeia e insensíveis ao reboliço que ali vai no interior.
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quarta-feira, 5 de outubro de 2011
«Alvo»
"Por uma vez conta como o corpo se ajusta à superfície das tuas palavras. Fala de um depois anterior, desse sono demente na fissura da luz; do violento voo ou ferida cíclica, a ausência excedendo-se na pele quando a desoras perfumas minhas mãos. Estende-se o calor aos lábios, o verão simula a duração no verso, circula a água, vigorosa, no fundo do poço até desaparecer na cama muda.
Nada é o que parece, lembra-se o que se esquece e eu digo os dedos descalços dissolvem em tua boca o mel à flor dos destroços. Olha-me: deita o olhar em meu vestido, tira-o num gesto ébrio e precipitado como a um prisioneiro, os peixes sobem lestos no lago imoderado e a noite volta, lenta, adormecida. Dou-te o que não tenho – a história de um rio exultante a explodir na boca em versão romântica, poema sem trágicos sulcos ou fala completa. E tu, tu dás-me o que sou: metáfora doendo-se alto onde acaba o texto."
Nada é o que parece, lembra-se o que se esquece e eu digo os dedos descalços dissolvem em tua boca o mel à flor dos destroços. Olha-me: deita o olhar em meu vestido, tira-o num gesto ébrio e precipitado como a um prisioneiro, os peixes sobem lestos no lago imoderado e a noite volta, lenta, adormecida. Dou-te o que não tenho – a história de um rio exultante a explodir na boca em versão romântica, poema sem trágicos sulcos ou fala completa. E tu, tu dás-me o que sou: metáfora doendo-se alto onde acaba o texto."
- ANA MARQUES GASTÃO, in "Nós/Nudos"
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terça-feira, 20 de setembro de 2011
(texto perdido no tempo)
Nunca se viu nada assim pelas margens deste corpo. Os sinais atiram a culpa à biologia determinista, as rugas a uma mente fraca, a pele a um coração apaixonado. As entidades corporais têm receio de investigar, preocupadas com a mistura de indícios que se revela demasiado complicada de resolver. Só se conhece outro corpo assim, o que impossibilita uma investigação mais aprofundada, sendo ainda inexistentes fundos que a comparticipem.
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sábado, 17 de setembro de 2011
(se fosse caso disso)
Abrir-te-ia a porta se fosse caso disso. Dou conta de mim sentada sobre as escadas, olhando de soslaio a ombreira da porta. Precisamente, de soslaio que se assim não fosse não estaria de braço dado com a descrição. Ou com a ânsia. De te não esperar.
Não se brinca com o amor, já o dizia Musset num outro idioma mais dado a clichés. Adiante.
De pernas coladas, ao chão e ao desamor, adivinhei o mais fácil. Que de previsibilidades antecipadamente antecipadas já se foi o mundo habituando. Contrariado, por certo, fechando um olho e abrindo o outro numa tentativa de evitar o já mais visto cruzar de braços. Porque se o corpo nos denuncia, a traição foi encomendada pelo próprio.
O volume de escadas adensa-se com o tempo. Estou certa que será uma mera ilusão, mas o tempo não pára e a porta não se abre e o tempo passa. A porta não se abriu ainda. E eu não me levantei, por céus!
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sexta-feira, 16 de setembro de 2011
um Eu depois de um Tu
"Eu vinha povoado de supostos fantasmas
Trazia uma ou outra vingança por consumar
Nesses dias em que desocupado
De grandes desgraças traições anseios
Eu vinha apenas vindo quando te atravessaste
Intransponível
Nesse caminho que fazia só fazendo
Pouco alerta mudo impávido
Quando olhava sem bem olhar via só o que queria
Mesmo no que ver me custava acreditar
E foi quando o teu sorriso
Esse meio sorriso gioconda
Se tornou primeiro aos olhos depois ao tacto
Intransponível
E o caminho que fazia só indo desocupado
Esbarrou no que queríamos e vejo hoje
Mais que só olhar
Que o teu sorriso
Gioconda
Meio sorriso
É uma desgraça impávida
Límpido como não soubera haver uma boca
Como dizer líquida
Quase líquida
No pouco que lhe podemos saber
Meio sorriso permanente imutável
Que penso que é por nos amares
E por veres para além do que eu
Despovoado
Já sem grandes vinganças por consumar
Desvanecido
Quase líquido também
Que nos amares que nos amarmos
Poderá quem sabe matar anseios receios
De traições fantasmas
Serena certeza que líquida
Quase meia boca
Me faz o caminho só na tua direcção
Onde pareces saber que esperas
Serena
Gioconda
Que vamos durar sem mesmo sabermos
Dadas as mãos as mãos dadas
Intransponíveis
Serão duas aos olhos ao tacto parecem menos
E são tudo o que temos
E são tudo"
- RODRIGO GUEDES DE CARVALHO, in a Casa Quieta, Lisboa, Dom Quixote, 2005
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excerto,
literatura,
Rodrigo Guedes de Carvalho
quarta-feira, 14 de setembro de 2011
Nó
Uma força anímica tomou-lhe conta do corpo. Sendo patologicamente alérgica à dor, tudo nela bulia quando nesse estado de letargia. Revolvem-se correntes, sentem-se palpitações fora de tempo e uma contracção de vontades enlaçadas num nó que não se ata nem desata. Não se prescreve rigorosamente nada, dizem os sábios - anciães não reconhecidos - que o anti-histamínico, a existir, estaria no recôndito tempo. Que o tempo ameniza, que os segundos vagarosos acalmam a febre de quem engole sapos. Muito longe disso se encontra a crença de quem padece de tal alergia. Os olhos mingam de tão massacrados, o vermelho atiça-se-lhes sobre a cor original. O corpo recolhe-se à postura embrionária, fugindo à frente de combate sobre o inimigo que se ergue e ergue e ergue e impera por pele alheia. Articulações rígidas são fraqueza imediata. E os segundos passam, os dias vão aparecendo sob a forma de um hoje, de um amanhã, de um «já se passaram tantos meses».
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segunda-feira, 12 de setembro de 2011
«Escrever não é falar»
"«Ficam calados porque já não têm mais nada a dizer.»
- Mas tu não poupas palavras: tu escreves. Todas as noites gastas uma hora a escrever um diário nesse teu caderno...
- Escrever não é falar.
- Não? Qual é a diferença?
- É exactamente o oposto. Escrever é usar as palavras que se guardaram: se tu falares de mais, já não escreves, porque não te resta nada para dizer.
Anos mais tarde, já estava doente, voltei a lembrar-me dessa nossa conversa. Tinha acabado de te escrever uma carta - que nunca te cheguei a mandar e que destruí depois. E, escrevendo, poupei as coisas que gostaria de te ter dito e que gostaria que tivesses ouvido. Cheguei quase a convencer-me de que bastava escrever-te para tu me ouvires, mesmo que nunca tenha chegado a pôr a carta no correio. Porque era tão sentido e tão magoado, tão distante, o que te dizia nessas cartas, que quase acreditei que tu não podias deixar de me ouvir."
- Mas tu não poupas palavras: tu escreves. Todas as noites gastas uma hora a escrever um diário nesse teu caderno...
- Escrever não é falar.
- Não? Qual é a diferença?
- É exactamente o oposto. Escrever é usar as palavras que se guardaram: se tu falares de mais, já não escreves, porque não te resta nada para dizer.
Anos mais tarde, já estava doente, voltei a lembrar-me dessa nossa conversa. Tinha acabado de te escrever uma carta - que nunca te cheguei a mandar e que destruí depois. E, escrevendo, poupei as coisas que gostaria de te ter dito e que gostaria que tivesses ouvido. Cheguei quase a convencer-me de que bastava escrever-te para tu me ouvires, mesmo que nunca tenha chegado a pôr a carta no correio. Porque era tão sentido e tão magoado, tão distante, o que te dizia nessas cartas, que quase acreditei que tu não podias deixar de me ouvir."
- MIGUEL SOUSA TAVARES, in "No Teu Deserto"
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Miguel Sousa Tavares
Encantos do adormecer
"E, depois, falávamos sobre a vida que tínhamos deixado para trás, interrompida por estes dias fora de tudo. Ou melhor, falavas tu, porque eu não tinha vida para te contrapor.
E de vez em quando, paravas de falar e perguntavas:
- Estou a ser chato?
- Não, não: continua a falar, que te estou a ouvir.
Mas vou-te confessar: ... escondia-me atrás dos óculos escuros e ia dormindo, embalada pela tua voz... e eu sentia-me tão bem assim, protegida pelo som da tua voz...irreal me parecia toda esta felicidade que não te sei dizer!"
E de vez em quando, paravas de falar e perguntavas:
- Estou a ser chato?
- Não, não: continua a falar, que te estou a ouvir.
Mas vou-te confessar: ... escondia-me atrás dos óculos escuros e ia dormindo, embalada pela tua voz... e eu sentia-me tão bem assim, protegida pelo som da tua voz...irreal me parecia toda esta felicidade que não te sei dizer!"
- MIGUEL SOUSA TAVARES, in "No Teu Deserto"
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quinta-feira, 8 de setembro de 2011
O escritor e a sua escrita
«Um escritor nunca esquece a primeira vez em que aceita umas moedas ou um elogio a troco de uma história. Nunca esquece a primeira vez em que sente no sangue o doce veneno da vaidade e acredita que, se conseguir que ninguém descubra a sua falta de talento, o sonho da literatura será capaz de lhe dar um tecto, um prato de comida quente ao fim do dia e aquilo por que mais anseia: ver o seu nome impresso num miserável pedaço de papel que certamente lhe sobreviverá. Um escritor está condenado a recordar esse momento pois nessa altura já está perdido e a sua alma tem preço.»
- CARLOS RUIZ ZAFON, in "O Jogo do Anjo"
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segunda-feira, 29 de agosto de 2011
Cru com as terras e terrinhas
"Um dos grandes problemas da nossa sociedade é o trauma da morada. Por exemplo, há uns anos, um grande amigo meu, que morava em Sete Rios, comprou um andar em Carnaxide.
Fica pertíssimo de Lisboa, é agradável, tem árvores e cafés. Só tinha um problema. Era em Carnaxide.
Nunca mais ninguém o viu.
Para quem vive em Lisboa, tinha emigrado para a Mauritânia!
Acontece o mesmo com todos os sítios acabados em -ide, como Carnide e Moscavide. Rimam com Tide e com Pide e as pessoas não lhes ligam pevide.
Um palácio com sessenta quartos em Carnide é sempre mais traumático do que umas águas-furtadas em Cascais. É a injustiça do endereço.
Está-se numa festa e as pessoas perguntam, por boa educação ou por curiosidade, onde é que vivemos. O tamanho e a arquitectura da casa não interessam. Mas morre imediatamente quem disser que mora em Massamá, Brandoa, Cumeada, Agualva-Cacém, Abuxarda, Alformelos, Murtosa, Angeja. ou em qualquer outro sítio que soe à toponímia de Angola.
Para não falar na Cova da Piedade, na Coina, no Fogueteiro e na Cruz de Pau. (...)
Ao ler os nomes de alguns sítios - Penedo, Magoito, Porrais, Venda das Raparigas, compreende-se porque é que Portugal não está preparado para entrar na Europa.
De facto, com sítios chamados Finca Joelhos (concelho de Avis) e Deixa o Resto (Santiago do Cacém), como é que a Europa nos vai querer integrar?
Compreende-se logo que o trauma de viver na Damaia ou na Reboleira não é nada comparado com certos nomes portugueses.
Imagine-se o impacto de dizer "Eu sou da Margalha" (Gavião) no meio de um jantar.
Veja-se a cena num chá dançante em que um rapaz pergunta delicadamente "E a menina de onde é?", e a menina diz: "Eu sou da Fonte da Rata" (Espinho).
E suponhamos que, para aliviar, o senhor prossiga, perguntando "E onde mora, presentemente?", Só para ouvir dizer que a senhora habita na Herdade da Chouriça (Estremoz).
É terrível. O que não será o choque psicológico da criança que acorda, logo depois do parto, para verificar que acaba de nascer na localidade de Vergão Fundeiro?
Vergão Fundeiro, que fica no concelho de Proença-a-Nova, parece o nome de uma versão transmontana do Garganta Funda.
Aliás, que se pode dizer de um país que conta não com uma Vergadela (em Braga), mas com duas, contando com a Vergadela de Santo Tirso ? Será ou não exagerado relatar a existência, no concelho de Arouca, de uma Vergadelas?
É evidente, na nossa cultura, que existe o trauma da "terra".
Ninguém é do Porto ou de Lisboa.
Toda a gente é de outra terra qualquer. Geralmente, como veremos, a nossa terra tem um nome profundamente embaraçante, daqueles que fazem apetecer mentir.
Qualquer bilhete de identidade fica comprometido pela indicação de naturalidade que reze Fonte do Bebe e Vai-te (Oliveira do Bairro).
É absolutamente impossível explicar este acidente da natureza a amigos estrangeiros ("I am from the Fountain of Drink and Go Away...").
Apresente-se no aeroporto com o cartão de desembarque a denunciá-lo como sendo originário de Filha Boa.
Verá que não é bem atendido. (...) Não há limites. Há até um lugar chamado Cabrão, no concelho de Ponte de Lima !!!
Urge proceder à renomeação de todos estes apeadeiros.
Há que dar-lhes nomes civilizados e europeus, ou então parecidos com os nomes dos restaurantes giraços, tipo : Não Sei, A Mousse é Caseira, Vai Mais um Rissol. (...)
Também deve ser difícil arranjar outro país onde se possa fazer um percurso que vá da Fome Aguda à Carne Assada (Sintra) passando pelo Corte Pão e Água (Mértola), sem passar por Poriço (Vila Verde), e acabando a comprar rebuçados em Bombom do Bogadouro (Amarante), depois de ter parado para fazer um chichi em Alçaperna (Lousã)."
- MIGUEL ESTEVES CARDOSO, "Diz-me Onde Moras"
Fica pertíssimo de Lisboa, é agradável, tem árvores e cafés. Só tinha um problema. Era em Carnaxide.
Nunca mais ninguém o viu.
Para quem vive em Lisboa, tinha emigrado para a Mauritânia!
Acontece o mesmo com todos os sítios acabados em -ide, como Carnide e Moscavide. Rimam com Tide e com Pide e as pessoas não lhes ligam pevide.
Um palácio com sessenta quartos em Carnide é sempre mais traumático do que umas águas-furtadas em Cascais. É a injustiça do endereço.
Está-se numa festa e as pessoas perguntam, por boa educação ou por curiosidade, onde é que vivemos. O tamanho e a arquitectura da casa não interessam. Mas morre imediatamente quem disser que mora em Massamá, Brandoa, Cumeada, Agualva-Cacém, Abuxarda, Alformelos, Murtosa, Angeja. ou em qualquer outro sítio que soe à toponímia de Angola.
Para não falar na Cova da Piedade, na Coina, no Fogueteiro e na Cruz de Pau. (...)
Ao ler os nomes de alguns sítios - Penedo, Magoito, Porrais, Venda das Raparigas, compreende-se porque é que Portugal não está preparado para entrar na Europa.
De facto, com sítios chamados Finca Joelhos (concelho de Avis) e Deixa o Resto (Santiago do Cacém), como é que a Europa nos vai querer integrar?
Compreende-se logo que o trauma de viver na Damaia ou na Reboleira não é nada comparado com certos nomes portugueses.
Imagine-se o impacto de dizer "Eu sou da Margalha" (Gavião) no meio de um jantar.
Veja-se a cena num chá dançante em que um rapaz pergunta delicadamente "E a menina de onde é?", e a menina diz: "Eu sou da Fonte da Rata" (Espinho).
E suponhamos que, para aliviar, o senhor prossiga, perguntando "E onde mora, presentemente?", Só para ouvir dizer que a senhora habita na Herdade da Chouriça (Estremoz).
É terrível. O que não será o choque psicológico da criança que acorda, logo depois do parto, para verificar que acaba de nascer na localidade de Vergão Fundeiro?
Vergão Fundeiro, que fica no concelho de Proença-a-Nova, parece o nome de uma versão transmontana do Garganta Funda.
Aliás, que se pode dizer de um país que conta não com uma Vergadela (em Braga), mas com duas, contando com a Vergadela de Santo Tirso ? Será ou não exagerado relatar a existência, no concelho de Arouca, de uma Vergadelas?
É evidente, na nossa cultura, que existe o trauma da "terra".
Ninguém é do Porto ou de Lisboa.
Toda a gente é de outra terra qualquer. Geralmente, como veremos, a nossa terra tem um nome profundamente embaraçante, daqueles que fazem apetecer mentir.
Qualquer bilhete de identidade fica comprometido pela indicação de naturalidade que reze Fonte do Bebe e Vai-te (Oliveira do Bairro).
É absolutamente impossível explicar este acidente da natureza a amigos estrangeiros ("I am from the Fountain of Drink and Go Away...").
Apresente-se no aeroporto com o cartão de desembarque a denunciá-lo como sendo originário de Filha Boa.
Verá que não é bem atendido. (...) Não há limites. Há até um lugar chamado Cabrão, no concelho de Ponte de Lima !!!
Urge proceder à renomeação de todos estes apeadeiros.
Há que dar-lhes nomes civilizados e europeus, ou então parecidos com os nomes dos restaurantes giraços, tipo : Não Sei, A Mousse é Caseira, Vai Mais um Rissol. (...)
Também deve ser difícil arranjar outro país onde se possa fazer um percurso que vá da Fome Aguda à Carne Assada (Sintra) passando pelo Corte Pão e Água (Mértola), sem passar por Poriço (Vila Verde), e acabando a comprar rebuçados em Bombom do Bogadouro (Amarante), depois de ter parado para fazer um chichi em Alçaperna (Lousã)."
- MIGUEL ESTEVES CARDOSO, "Diz-me Onde Moras"
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Miguel Esteves Cardoso
quarta-feira, 24 de agosto de 2011
Quotes
"All women become their mothers. That's their tragedy.
No man does. That's his."
- OSCAR WILDE
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citação,
Oscar Wilde,
quote
terça-feira, 23 de agosto de 2011
Wanted
"I think it's better to have someone, even if it hurts, even if it is the most painful thing you have done, even if it's the most painful thing you've ever had to do. I think it's better to have someone.
At the end of the day, when it comes down to it, all we really want is to be close to somebody. So this thing where we all keep our distance and pretend not to care about each other, it's usually a load of bull. So we pick and choose who we want to remain close to, and once we've chosen those people, we tend to stick close by. No matter how much we hurt them. The people that are still with you at the end of the day, those are the ones worth keeping. And sure, sometimes close can be too close. But sometimes, that invasion of personal space, it can be exactly what you need."
At the end of the day, when it comes down to it, all we really want is to be close to somebody. So this thing where we all keep our distance and pretend not to care about each other, it's usually a load of bull. So we pick and choose who we want to remain close to, and once we've chosen those people, we tend to stick close by. No matter how much we hurt them. The people that are still with you at the end of the day, those are the ones worth keeping. And sure, sometimes close can be too close. But sometimes, that invasion of personal space, it can be exactly what you need."
Quotes from Grey's Anatomy
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anatomia de grey,
citação,
grey's anatomy
segunda-feira, 22 de agosto de 2011
I could tell you how it felt like. I could really tell you but still you wouldn't get it.
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cunho pessoal
quarta-feira, 17 de agosto de 2011
(ainda)
De olhos fechados. Não é precisa concentração para que surjam imagens com que aprendi a lidar e as quais ainda não equacionei perder.
Há um sinal ali. Há uma marca daquele lado. E há uns riscos mais acima, que eu bem sei o que são. Do que é visível, sei quase tudo. Por isso ainda digo que há mais do que isto.
Por mais que feche os olhos há zonas onde não chego. I'm not there yet but someday I'll be. And I'm not there yet but we'll see.
LUISA SOBRAL - Not There Yet
Há um sinal ali. Há uma marca daquele lado. E há uns riscos mais acima, que eu bem sei o que são. Do que é visível, sei quase tudo. Por isso ainda digo que há mais do que isto.
Por mais que feche os olhos há zonas onde não chego. I'm not there yet but someday I'll be. And I'm not there yet but we'll see.
LUISA SOBRAL - Not There Yet
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Luisa Sobral,
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terça-feira, 16 de agosto de 2011
Páginas descritivas II
"Num pequeno terraço sobre a cidade, enquanto vai pendurando a roupa ao sol (no chão de cimento as sombras como bandeiras), a senhora Kyioko explica-me em inglês que sempre quis ir a Lisboa porque, aos quatro anos, em Quioto, viu um bar chamado "Lisbon" e as letras luminosas a acender e apagar na noite fascinaram-na e marcaram-na. Anos mais tarde, aquilo veio-lhe à memória e ela foi ver a uma enciclopédia o que é que significavam essas letras, "Lisbon". Aprendeu que era uma cidade, a capital de um país chamado Portugal, que ficava na Europa, e construiu o sonho de viajar até lá, um dia. "Ainda hei-de lá ir", diz-me num sorriso enquanto tira uma camisa da corda. No cimento as bandeiras de sombra agitando-se um pouco."
- JACINTO LUCAS PIRES, in "Livro Usado" (2001), Livros Cotovia
About:
citação,
Jacinto Lucas Pires,
literatura
Páginas descritivas
"As avenidas amplas e silenciosas, com reflexos nos vidros negros e uma ou outra bicicleta solitária; na berma da estrada, à volta de um buraco, as luzes caladas (como poucos sinais) girando - a noite limpa, brilhante.
Na ponte, no fim da noite, um homem de chapéu toca uma canção triste, e ao longe os prédios são cores na água, e no alto a lua é um ponto frágil."
- JACINTO LUCAS PIRES, in "Livro Usado" (2001), Livros Cotovia
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Jacinto Lucas Pires,
literatura
segunda-feira, 27 de junho de 2011
«Não sei de mim se não contigo»
A tela exibia cenas a decorrer sob as cores idílicas do entardecer. Com o fim de dia a pintar o quadro desenhava-se um ambiente em que a complexidade da acção se debruçava sobre duas figuras com destinos diferentes. Adivinhava-se o improvável, o desconhecido.
Recolhida na cadeira, no mais íntimo dos seus desejos, a vontade dela fugia para esse encontro, quase um outro encontro, em que esteve desde logo a descoberto, céu aberto, noite cerrada, tudo quanto desejava que a envolvesse: o improvável numa combinação do que ninguém esperava ver resultar. A combinação, logo que criada, mostrou-se indissociável. Eram dois contra todos, o eufemismo a ganhar terreno à metáfora negra elaborada pelo mundo.
Desnorteada, ela encosta-se ao ombro que a acompanha. O gesto oferece-lhe a segurança que o fim de tarde lhe rouba. Enquanto conseguir afastar o frio próprio do momento em que as cores do poente se transformam, o eufemismo dela resiste.
Em segundos vestidos de silêncio, levanta a cabeça e encosta os lábios ao ouvido dele para lhe murmurar a mais simples das devoções. E no entanto, mexe os lábios como quem vai pronunciar mas a voz recolhe-se. Fracções de segundo aproximam-na da metáfora do mundo e o seu eufemismo quase conhece uma rendição.
Ele desvia-se do enredo e olha-a porque esperava palavras que sempre lhe dão a certeza que já raramente encontra sozinho. Do outro lado, as palavras por dizer revelam-se óbvias de quem precisa da segurança que já não lhe chega às mãos, aos ouvidos, a segurança que não lhe fazem chegar. Então, ela demove-se:
- No intervalo digo-te.
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cunho pessoal
sábado, 4 de junho de 2011
Mais Rodrigo, já
"Levantou-se de repente. Como se de um pesadelo. A cabeça pesada, os membros torpes, as articulações ferrugentas da insónia. E o dia que nunca mais irrompia pelos espaços regulares da persiana, desenhos milimétricos na escultura rígida da janela.
Este não é o meu quarto e estou farto de hotéis. Uma mulher respira devagar por trás de si. Amo-a? Mexe-se ligeiramente, muda de posição, murmura palavras fugidas de sonhos desfeitos, volta a adormecer, a boca ligeiramente mais aberta, a mesma respiração aquática. Que faço eu aqui?
Agma, no pescoço, na cara, as mãos em concha, duas três quatro vezes, lavar-me, começar a limpar-se por ali, como se restassem nas pálpebras e nos lábios pedaços apodrecidos da goma da resignação. Sentiu, enquanto os olhos fechados se lembravam das corridas de bicicleta entre a Apúlia e ofir, e a boca reaprendia a pouco e pouco a arquitectura difícil dos sorrisos abertos da infância, a mulher que se remexia no seu sono inquieto, Falas tanto de noite, Dizes tanta coisa que não percebo, que me apetece logo inventar aí, nesse espaço a que definitivamente não pertenço a cova escondida do entendimento que definitivamente não logramos alcançar, um raspar mais brusco dos lençóis, um bocejo enorme, claro, a faísca de um isqueiro, claro, a voz que já não pertence ao sonho clara.
- Porque é que acordaste tão cedo?
Porque é que me deitei tão tarde, e contigo, uma vez mais contigo, um corpo à deriva, a jangada da tua sedução, há quanto tempo?
- Podes responder-me quando falo contigo?
Cala-te, estou a redescobrir o prazer de fazer a barba, a lâmina a viajar os contornos do queixo, a alternância agradável da água quente e da água fria, estou bem, estou quase limpo. Cala-te.
- Estava cheio de calor, dormi mal.
- Porra, eu dormi como uma lontra...
E um novo bocejo (porque é que os conto?), imaginou-lhe de costas o hábito de prender o cigarro entre o anelar e o médio, a cinza que se começa a inclinar, a maneira distraída de coçar a nuca. Ainda bem. Que dormiste bem, quero dizer. Voltou ao quarto acalmando a irritação da cara com palmadas sábias de after shave, num gesto que aprendeu com os cow-boys da infância (quando eu for grande e fizer a barba), reparou na própria sombra atapetada na alcatifa pela radiação falsa da luz da casa de banho, adivinhou os contornos das coxas nuas, dos seios em desmazelo agora que a chama do isqueiro se juntava aos primeiros raios de sol que espreitavam pelas feridas da persiana, adivinhou a própria boca sem nada para dizer dali a pouco, sem qualquer palavra na profunda arrecadação da linguagem que conseguisse traduzir o que lhe ia por dentro, realmente por dentro, doridamente por dentro, sem nada para dizer ou responder.
- Então já não deixas crescer a barba?
Tomar a iniciativa de dizer quando lhe pareceu de repente que eram horas de partir, de abalar, de romper de vez juntamente com a luminosidade teimosa da manhã, um salto sem regresso, uma viagem sem retorno possível, atirou a toalha para cima da cama, abriu os pesados cortinados de veludo. Ei, não abras essa merda, olhou finalmente a mulher com os olhos engessados da decisão, se calhar sorriu, se calhar deu-lhe gozo feri-la no seu torpor de bicho nocturno, abriu as persianas, a janela, a porta da varanda, abriu tudo o que havia para abrir, deixar sair o cheiro a mofo, a podre, continuar a limpar-se.
- Vou-me embora.
- Foda-se, acordaste mesmo de cu para o ar. Ao menos dá-me tempo de me vestir.
Não percebeste nada, continuas a não perceber nada, não é do hotel que me vou embora, não é deste quarto excessivamente luxuoso, excessivamente impessoal como tu me pareces nesta manhã, como tu finalmente pareces, vou-me embora de mim, repara, olha para mim, não acredito que não mo leias nos olhos, na transpiração aflita das mãos, não acredito que não notes, que não te apercebas e, no entanto, não vou nada embora, sei-o, vou permanecer para sempre grávido dos dias que não me atrevo a relembrar, a fazer voltar, às tantas, merda, não conseguirei nunca ir-me embora, nunca partir como se inventasse nesse momento eternamente adiado a alegria refrescante da chegada, anda, veste-te lá, vou descendo, vou pagando a noite que não tive, e foi como se ao dirigir-se ao empregado alto e curvado da recepção que o cumprimentou numa subserviência pegajosa, se dirigisse de facto à mulher que naquele preciso momento (adivinhava-o) compunha em frente ao espelho da casa de banho o caos escuro dos cabelos, indignada por ter sido selvaticamente arrancada a conforto celular do sono da manhã, resmungando impropérios com a boca cerzida que (de certeza aperta os ganchos trazidos das toilettes da adolescência, tirou a carteira do bolso do blusão (Fica-me mal porque continuo a usá-lo?), olhou novamente o recibo que a cegonha lhe estendia, e pensou numa soma elaborada pela mulher, a multiplicação imparável de uma solidão sem remédio.
Ouviu a campainha do elevador que aterrava na recepção, pressentiu sem olhar a mulher a empurrar a porta, o cabelo apanhado na nuca com um elástico furioso, os longilíneos óculos escuros repletos de acordes estridentes sofregamente engolidos numa maratona rockeira do Pavilhão Infante de Sagres, deixou uma nota mais pequena de gorjeta, pôs também os óculos, o tique obrigou-o a verificar a fralda da camisa, e atravessou a porta de vidro com a sensação de ter rachado algo que deveria ter tido a coragem de quebrar."
Este não é o meu quarto e estou farto de hotéis. Uma mulher respira devagar por trás de si. Amo-a? Mexe-se ligeiramente, muda de posição, murmura palavras fugidas de sonhos desfeitos, volta a adormecer, a boca ligeiramente mais aberta, a mesma respiração aquática. Que faço eu aqui?
Agma, no pescoço, na cara, as mãos em concha, duas três quatro vezes, lavar-me, começar a limpar-se por ali, como se restassem nas pálpebras e nos lábios pedaços apodrecidos da goma da resignação. Sentiu, enquanto os olhos fechados se lembravam das corridas de bicicleta entre a Apúlia e ofir, e a boca reaprendia a pouco e pouco a arquitectura difícil dos sorrisos abertos da infância, a mulher que se remexia no seu sono inquieto, Falas tanto de noite, Dizes tanta coisa que não percebo, que me apetece logo inventar aí, nesse espaço a que definitivamente não pertenço a cova escondida do entendimento que definitivamente não logramos alcançar, um raspar mais brusco dos lençóis, um bocejo enorme, claro, a faísca de um isqueiro, claro, a voz que já não pertence ao sonho clara.
- Porque é que acordaste tão cedo?
Porque é que me deitei tão tarde, e contigo, uma vez mais contigo, um corpo à deriva, a jangada da tua sedução, há quanto tempo?
- Podes responder-me quando falo contigo?
Cala-te, estou a redescobrir o prazer de fazer a barba, a lâmina a viajar os contornos do queixo, a alternância agradável da água quente e da água fria, estou bem, estou quase limpo. Cala-te.
- Estava cheio de calor, dormi mal.
- Porra, eu dormi como uma lontra...
E um novo bocejo (porque é que os conto?), imaginou-lhe de costas o hábito de prender o cigarro entre o anelar e o médio, a cinza que se começa a inclinar, a maneira distraída de coçar a nuca. Ainda bem. Que dormiste bem, quero dizer. Voltou ao quarto acalmando a irritação da cara com palmadas sábias de after shave, num gesto que aprendeu com os cow-boys da infância (quando eu for grande e fizer a barba), reparou na própria sombra atapetada na alcatifa pela radiação falsa da luz da casa de banho, adivinhou os contornos das coxas nuas, dos seios em desmazelo agora que a chama do isqueiro se juntava aos primeiros raios de sol que espreitavam pelas feridas da persiana, adivinhou a própria boca sem nada para dizer dali a pouco, sem qualquer palavra na profunda arrecadação da linguagem que conseguisse traduzir o que lhe ia por dentro, realmente por dentro, doridamente por dentro, sem nada para dizer ou responder.
- Então já não deixas crescer a barba?
Tomar a iniciativa de dizer quando lhe pareceu de repente que eram horas de partir, de abalar, de romper de vez juntamente com a luminosidade teimosa da manhã, um salto sem regresso, uma viagem sem retorno possível, atirou a toalha para cima da cama, abriu os pesados cortinados de veludo. Ei, não abras essa merda, olhou finalmente a mulher com os olhos engessados da decisão, se calhar sorriu, se calhar deu-lhe gozo feri-la no seu torpor de bicho nocturno, abriu as persianas, a janela, a porta da varanda, abriu tudo o que havia para abrir, deixar sair o cheiro a mofo, a podre, continuar a limpar-se.
- Vou-me embora.
- Foda-se, acordaste mesmo de cu para o ar. Ao menos dá-me tempo de me vestir.
Não percebeste nada, continuas a não perceber nada, não é do hotel que me vou embora, não é deste quarto excessivamente luxuoso, excessivamente impessoal como tu me pareces nesta manhã, como tu finalmente pareces, vou-me embora de mim, repara, olha para mim, não acredito que não mo leias nos olhos, na transpiração aflita das mãos, não acredito que não notes, que não te apercebas e, no entanto, não vou nada embora, sei-o, vou permanecer para sempre grávido dos dias que não me atrevo a relembrar, a fazer voltar, às tantas, merda, não conseguirei nunca ir-me embora, nunca partir como se inventasse nesse momento eternamente adiado a alegria refrescante da chegada, anda, veste-te lá, vou descendo, vou pagando a noite que não tive, e foi como se ao dirigir-se ao empregado alto e curvado da recepção que o cumprimentou numa subserviência pegajosa, se dirigisse de facto à mulher que naquele preciso momento (adivinhava-o) compunha em frente ao espelho da casa de banho o caos escuro dos cabelos, indignada por ter sido selvaticamente arrancada a conforto celular do sono da manhã, resmungando impropérios com a boca cerzida que (de certeza aperta os ganchos trazidos das toilettes da adolescência, tirou a carteira do bolso do blusão (Fica-me mal porque continuo a usá-lo?), olhou novamente o recibo que a cegonha lhe estendia, e pensou numa soma elaborada pela mulher, a multiplicação imparável de uma solidão sem remédio.
Ouviu a campainha do elevador que aterrava na recepção, pressentiu sem olhar a mulher a empurrar a porta, o cabelo apanhado na nuca com um elástico furioso, os longilíneos óculos escuros repletos de acordes estridentes sofregamente engolidos numa maratona rockeira do Pavilhão Infante de Sagres, deixou uma nota mais pequena de gorjeta, pôs também os óculos, o tique obrigou-o a verificar a fralda da camisa, e atravessou a porta de vidro com a sensação de ter rachado algo que deveria ter tido a coragem de quebrar."
- RODRIGO GUEDES DE CARVALHO, in "Daqui a Nada", 1992, Contexto
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Rodrigo Guedes de Carvalho
quarta-feira, 1 de junho de 2011
Não merecedor de título
"O amor não dura. Um dia acordamos e o encanto desfez-se. O mundo voltou a ser o que era, ou seja, mais ou menos nada."
- TEOLINDA GERSÃO, in "A Cidade de Ulisses"
- TEOLINDA GERSÃO, in "A Cidade de Ulisses"
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Teolinda Gersão
terça-feira, 31 de maio de 2011
"A Casa Quieta"
"Não te vou procurar. E vim para casa sabendo que pela primeira vez não o faria, interrogando-me como se faz isto, repara a impossibilidade, aprender a fazer como não se faz. É então isto a morte. (...) Não te podendo procurar porque és agora nada, a morte são uns olhos de cão aos pés do teu lugar da cama, a olhar para mim, a olhar para onde te via. (...) A tua morte matou-nos. (...) Levanto-me. Sento-me. Ergo-me. Caminho. Dou a volta. Regresso. Os passos do cão atrás de mim. As unhas dele no soalho. Poderia talvez dizer o teu nome. Se eu fosse poeta acreditaria que isso havia de te ressuscitar. Dizer o teu nome. Pensar no que sempre ouvimos dizer. Que as pessoas não morrem desde que pensemos nelas. Desde que as mantenhamos junto a nós, desde que digamos os seus nomes, o que lhes garantia existirem e serem únicas e não serem mais ninguém. (...) É então isto a morte. Não estares lá e ao mesmo tempo não estares em sítio nenhum, na casa de banho, na sala, a desentortar a torneira do pátio, a regar as plantas, no supermercado, nem sequer na vizinha, não foste visitar a tua prima afastada doente, não estás à espera de um táxi na avenida, não estás Mariana."
- RODRIGO GUEDES DE CARVALHO, in "A Casa Quieta"
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Rodrigo Guedes de Carvalho
segunda-feira, 30 de maio de 2011
Cinzento mortiço
O sono tarda.
Digamos que o corpo se resente do desassossego que está entranhado na pele. O esqueleto dá voltas, encolhe-se miudinho e queda-se como pode, isso quase impossível pela medida da velocidade a que correm os pensamentos. Palavras ecoam, olhares afastam-se numa imagem que já não cabe dentro de quatro paredes. Ou em lado algum.
Quem imaginaria que a imprecisão do preto e branco, se tornasse tão depressa nesse cinzento mortiço? Quanto de nós fica preso nessa transformação? A totalidade?
Isso não me deixa dormir. Nada me deixa dormir.
A chuva cai, a música toca, o vento sopra. A mente chia.
Os passos lá em cima aquecem o chão, mas quem me aquece a mim?
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sábado, 28 de maio de 2011
É áspera, é fria, é nada.
Como um reflexo desenhado na janela, a gota avança. Depois insurge-se sobre o forte transparente, toma-o de assalto, segue-lhe a guerra dos passos. Como cola, apodera-se de todos os pedaços da superfície porosa e come-lhe a liberdade, liberdade roubada como carne queimada na carnifiçaria de outras eras.
E tudo vai e muito pouco volta.
Um piano toca lá atrás. O som balança o corpo que quer silêncio puro e duro ou o abraço largo, quente, forte. Desarmado, o corpo cede e vai cedendo, as teclas dando tom agudo à queda. É áspera, é fria, é nada. É vidro estilhaçado. É áspera, é fria, é nada. É a queda livre desgovernada. É áspera, é fria, é nada.
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segunda-feira, 23 de maio de 2011
Não gosto.
Let's pretend I'm a fool.
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domingo, 8 de maio de 2011
Marioneta imperfeita
A poucas palavras me tenho dedicado. Entre os meus emaranhados de palavras, encontrei este que nunca publiquei. Como falam palavras minhas por aqui...
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Mandaram-me fechar a persiana como quem manda fechar uma porta. Perdi a luz, murchou-me a alegria da mesma forma que uma flor murcha quando o sol e a água lhe faltam. Na minha vida tenho uma lua, mas falta-me o sol, a sapiência, o tempo. Falta-me o tempo que deixei para trás e esconderam-me o que não fui. Onde está esse eu? Por que portas me fecharam o caminho de volta a mim?
Lembro-me dos caminhos que iam dar à minha alegria. As formas da natureza faziam-me sombra enquanto eu me encontrava mergulhada em abraços que deixei de ter. Os braços embrulhavam-me de tal forma, com tanto amor, com tanto calor…
Ninguém tem a coragem de nos falar sobre a díade do amor. Dizem que a primeira se estabelece entre a mãe e o seu bebé, mas esquecem-se de referir que quando crescemos somos cuidados, amados, acarinhados e que não há intuição que governe uma relação. Essa díade tem uma química nova, outras leis que se apoderam de nós e nos conduzem no universo. O que acontece se a química morre? Passamos a ser controlados pela física, por mandamentos do movimento? Talvez. Reconheço uma mecanização em mim, uma automatização que me ordena as formas de um segundo sentir.
Somos como o universo, tendemos para a desordem. Quanto de mim tem a entalpia em si? Cada bocadinho, conto-vos eu. Toda eu me desorganizei, me perdi.
É reversível? A desordem, o desconcerto? Onde está o meu manual de instruções? Não vim com nenhum engenho? Não há negócios assentes em mercados onde se tratam das nossas cordas? A minha corda tem um nó. Ou então a corda da mão está presa na do coração.
Sou uma marioneta imperfeita, das que as crianças deixam de querer pegar por estarem num emaranhado de cordas.
Lembro-me dos caminhos que iam dar à minha alegria. As formas da natureza faziam-me sombra enquanto eu me encontrava mergulhada em abraços que deixei de ter. Os braços embrulhavam-me de tal forma, com tanto amor, com tanto calor…
Ninguém tem a coragem de nos falar sobre a díade do amor. Dizem que a primeira se estabelece entre a mãe e o seu bebé, mas esquecem-se de referir que quando crescemos somos cuidados, amados, acarinhados e que não há intuição que governe uma relação. Essa díade tem uma química nova, outras leis que se apoderam de nós e nos conduzem no universo. O que acontece se a química morre? Passamos a ser controlados pela física, por mandamentos do movimento? Talvez. Reconheço uma mecanização em mim, uma automatização que me ordena as formas de um segundo sentir.
Somos como o universo, tendemos para a desordem. Quanto de mim tem a entalpia em si? Cada bocadinho, conto-vos eu. Toda eu me desorganizei, me perdi.
É reversível? A desordem, o desconcerto? Onde está o meu manual de instruções? Não vim com nenhum engenho? Não há negócios assentes em mercados onde se tratam das nossas cordas? A minha corda tem um nó. Ou então a corda da mão está presa na do coração.
Sou uma marioneta imperfeita, das que as crianças deixam de querer pegar por estarem num emaranhado de cordas.
(Julho 2010)
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Similaridades
"Leve, como uma coisa que começasse, a maresia da brisa pairou sobre o Tejo e espalhou-se sujamente pelos princípios da Baixa. Nauseava frescamente, num torpor frio de mar morto. Senti a vida no estômago, e o olfacto tornou-se-me uma coisa por detrás dos olhos. Altas, pousavam em nada nuvens ralas, rolos, num cinzento a desmoronar-se para branco falso. A atmosfera era de uma ameaça de céu cobarde, como a de uma trovoada inaudível, feita de ar somente.
Havia estagnação no próprio voo das gaivotas; pareciam coisas mais leves que o ar, deixadas nele por alguém. Nada abafava. A tarde caía num desassossego nosso; o ar refrescava intermitentemente.
Pobres das esperanças que tenho tido, saídas da vida que tenho tido de ter! São como esta hora e este ar, névoas sem névoa, alinhavos rotos de tormenta falsa. Tenho vontade de gritar, para acabar com a paisagem e a meditação. Mas há maresia no meu propósito, e a baixa-mar em mim deixou descoberto o negrume lodoso que está ali fora e não vejo senão pelo cheiro."
Havia estagnação no próprio voo das gaivotas; pareciam coisas mais leves que o ar, deixadas nele por alguém. Nada abafava. A tarde caía num desassossego nosso; o ar refrescava intermitentemente.
Pobres das esperanças que tenho tido, saídas da vida que tenho tido de ter! São como esta hora e este ar, névoas sem névoa, alinhavos rotos de tormenta falsa. Tenho vontade de gritar, para acabar com a paisagem e a meditação. Mas há maresia no meu propósito, e a baixa-mar em mim deixou descoberto o negrume lodoso que está ali fora e não vejo senão pelo cheiro."
- BERNARDO SOARES, in "Livro do Desassossego"
da «Estética do Artifício»
"Escrevo demorando-me nas palavras, como por montras onde não vejo, e são meios-sentidos, quase-expressões o que me fica, como cores de estofos que não vi o que são, harmonias exibidas compostas de não sei que objectos. Escrevo embalando-me, como uma mãe louca a um filho morto."
- BERNARDO SOARES, in "Livro do Desassossego"
- BERNARDO SOARES, in "Livro do Desassossego"
domingo, 20 de fevereiro de 2011
Minutos de desassossego II
"Dói-me qualquer sentimento que desconheço; falta-me qualquer argumento não sei sobre o quê; não tenho vontade nos nervos. Estou triste abaixo da consciência. E escrevo estas linhas, realmente mal-notadas, não para dizer isto, nem para dizer qualquer coisa, mas para dar um trabalho à minha desatenção. Vou enchendo lentamente, a traços moles de lápis rombo - que não tenho sentimentalidade para aparar - , o papel branco de embrulho de sanduíches, que me forneceram no café, porque eu não precisava de melhor e qualquer servia, desde que fosse branco. E dou-me por satisfeito."
- BERNARDO SOARES, in "Livro do Desassossego"
Minutos de desassossego
"Era a ocasião de estar alegre. Mas pesava-me qualquer coisa, uma ânsia desconhecida, um desejo sem definição, nem até reles. Tardava-me, talvez, a sensação de estar vivo. E quanto me debrucei da janela altíssima, sobre a rua para onde olhei sem vê-la, senti-me de repente um daqueles trapos húmidos de limpar coisas sujas, que se levam para a janela para secar, mas se esquecem, enrodilhados, no parapeito que mancham lentamentamente."
- BERNARDO SOARES, in "Livro do Desassossego"
terça-feira, 8 de fevereiro de 2011
Fotocópia
“Sou o que se chama de pessoa impulsiva. Como descrever? Acho que assim: vem-me uma idéia ou um sentimento e eu, em vez de refletir sobre o que me veio, ajo quase que imediatamente. O resultado tem sido meio a meio: às vezes acontece que agi sob uma intuição dessas que não falham, às vezes erro completamente, o que prova que não se tratava de intuição, mas de simples infantilidade.
Trata-se de saber se devo prosseguir nos meus impulsos. E até que ponto posso controlá-los. [...] Deverei continuar a acertar e a errar, aceitando os resultados resignadamente? Ou devo lutar e tornar-me uma pessoa mais adulta? E também tenho medo de tornar-me adulta demais: eu perderia um dos prazeres do que é um jogo infantil, do que tantas vezes é uma alegria pura. Vou pensar no assunto. E certamente o resultado ainda virá sob a forma de um impulso. Não sou madura bastante ainda. Ou nunca serei.”
- CLARICE LISPECTOR, in "Aprendendo a Viver"
Trata-se de saber se devo prosseguir nos meus impulsos. E até que ponto posso controlá-los. [...] Deverei continuar a acertar e a errar, aceitando os resultados resignadamente? Ou devo lutar e tornar-me uma pessoa mais adulta? E também tenho medo de tornar-me adulta demais: eu perderia um dos prazeres do que é um jogo infantil, do que tantas vezes é uma alegria pura. Vou pensar no assunto. E certamente o resultado ainda virá sob a forma de um impulso. Não sou madura bastante ainda. Ou nunca serei.”
- CLARICE LISPECTOR, in "Aprendendo a Viver"
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Uma quase antítese
"Lembro-me de lhe ter dito, Pareces um cisne e ela respondeu a limpar a boca às costas da mão, Sou um cisne. Sou o cisne da história do tio Zebra, aquele que parecia um intruso no meio das aves do lago, um patinho feio cheio de sonhos à espera que lhe caíssem aquelas penas pardas e baças, curioso de saber o que estaria por debaixo. Ainda tenho muitas penas baças, disse ela e sentou-se na borda da mesa de madeira grossa com o pucarinho na mão, arredondou a anca ao inclinar-se para analisar os próprios tornozelos, sem perceber a minha perturbação deslumbrada. Não te vejo nenhuma pena baça, disse eu à falta de melhor, o que eu queria dizer-lhe era Amo-te, desejo-te, morro de cada vez que me olhas, as tuas mãos macias como asas de pena doce despertam em mim o som de mil cordas de violino, ou é o rumor branco do meu sangue a soluçar."
- ROSA LOBATO DE FARIA, in "Os Pássaros de Seda"
- ROSA LOBATO DE FARIA, in "Os Pássaros de Seda"
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Desejo de vida
Aproveitei a tarde para a visitar: fui ver a avó, a que do avô confessa ter saudades. Vi o peso da ausência nas rugas da face, nas pregas da alma. E ainda assim, a vontade de continuar por cá.
"Tu estavas, avó, sentada na soleira da tua porta, aberta para a noite estrelada e imensa, para o céu de que nada sabias e por onde viajarias, para o silêncio dos campos e das árvores assombradas, e disseste, com a serenidade dos teus noventa anos e o fogo de uma adolescência nunca perdida: "O mundo é tão bonito e eu tenho tanta pena de morrer."Assim mesmo. Eu estava lá."
- JOSÉ SARAMAGO, in "As Pequenas Memórias"
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sábado, 5 de fevereiro de 2011
Utopia na Praça
Não consigo criar exactamente um texto. Preciso de me empurrar para a escrita porque de um propósito me despi.
Facilmente passei de uma confessa convertida a uma quase perfeita desinteressada. Digo-vos que há forças que puxam, puxam, contorcendo os dedos, ferindo as mãos por cicatrizar. Elas puxam, prendem, pegam, apertam. Elas arrancam as raízes mais fracas, as que por falta de direcção, lá iam pelo caminho das outras!
Não que fosse algo que eu desconhecesse, no entanto era tudo o que eu não avistava. E de repente, pela noite fresca a chamar o Inverno, entre gente e pessoas de copo na mão, ai a algazarra daquelas ruas miudinhas!, aparece uma luz. Uma luz. Uma pequena, tímida, luz. Mas chama. A luz.
E entre o que estava por vir e o que nunca se esperou que acontecesse, surgiu o que eu apelidava de utopia. Debaixo da chuva, do medo, de uma casa daquela Praça à porta do Bairro.
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ARCTIC MONKEYS - The Lovers
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quinta-feira, 27 de janeiro de 2011
«And it's amazing»
And no, it's not amazing.
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quinta-feira, 20 de janeiro de 2011
L.S.F.
JOSÉ GONZÁLEZ - Heartbeats
One night to be confused
One night to speed up truth
We had a promise paid
four hands and then away
Both under influence
we had divine sense
To know what to say
Mind as a razorblade
To call for hands of above
to lean on
Wouldn't be good enough
for me, no
One night of magic rush
The start of simple touch
One night to push and scream
and then relief
Ten days of perfect tunes
The colors red and blue
We had a promise made
we were in love
To call for hands of above
to lean on
Wouldn't be good enough
for me, no
And you, you knew the hand of the devil
And you, kept us awake with wolves teeth
sharing different heartbeats
in one night
To call for hands of above
to lean on
Wouldn't be good enough
for me, no
One night to speed up truth
We had a promise paid
four hands and then away
Both under influence
we had divine sense
To know what to say
Mind as a razorblade
To call for hands of above
to lean on
Wouldn't be good enough
for me, no
One night of magic rush
The start of simple touch
One night to push and scream
and then relief
Ten days of perfect tunes
The colors red and blue
We had a promise made
we were in love
To call for hands of above
to lean on
Wouldn't be good enough
for me, no
And you, you knew the hand of the devil
And you, kept us awake with wolves teeth
sharing different heartbeats
in one night
To call for hands of above
to lean on
Wouldn't be good enough
for me, no
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sexta-feira, 14 de janeiro de 2011
Uma mão: abrigo às gentes da rua
Afligem-me as situações dos que não têm voz.
Assustam-me as políticas de quem não age activamente contra essas mesmas vozes mudas.
---
16 de Novembro de 2010.
Acompanhei por uma noite uma das equipas de rua da Comunidade Vida e Paz. Nas fotografias abaixo, podem ver a entrada da casa do António e ainda o Mateus debaixo do seu próprio tecto, a casa que, com a ajuda do amigo, construiu sobre o lixo onde vive uma família de ratazanas.
Foi uma noite diferente de todas as outras e, com certeza, para repetir.
Há muitas vidas a precisar de uma mão para sairem da rua. Por que não oferecer a nossa?
Assustam-me as políticas de quem não age activamente contra essas mesmas vozes mudas.
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16 de Novembro de 2010.
Acompanhei por uma noite uma das equipas de rua da Comunidade Vida e Paz. Nas fotografias abaixo, podem ver a entrada da casa do António e ainda o Mateus debaixo do seu próprio tecto, a casa que, com a ajuda do amigo, construiu sobre o lixo onde vive uma família de ratazanas.
Foi uma noite diferente de todas as outras e, com certeza, para repetir.
Há muitas vidas a precisar de uma mão para sairem da rua. Por que não oferecer a nossa?
"É fácil chegar à rua para por lá ficar. Costuma dizer-se: cair na rua. Mas quem costuma são os que estão em casa, os que sempre estiveram em casa e, por isso, não imaginam a facilidade com que as paredes se desfazem. Não são só os drogados, os alcoólicos, enfim, os viciados. Há tantos vícios dentro de portas. Às vezes é isso o que empurra as pessoas para a rua: o álcool excessivo de um pai, de um marido. A necessidade de encontrar um sítio onde a nossa cabeça não vá, noite após noite, bater nas paredes até sangrar. Outras vezes fugimos para a rua para não enlouquecer de desalento, para aprender a não esperar mais nada de ninguém, para nunca mais voltarmos a desesperar por amor de alguém. Estes são os casos ditos mais difíceis, resistentes às assistentes sociais, aos lares, aos «projectos de vida», à chamada «reintegração». Estúpida palavra, absurda cheia de gelo e fealdade – reintegração. Todos os reintegradores acabarão um dia, um dia não muito longe, reintegrados na terra. Ou no fogo. Isto, os que vivem na rua sabem-no melhor do que os outros. Têm a fortuna imensa de já não ter nada a perder – por isso, podem dar-se ao luxo de ficar um dia inteiro a olhar para o rio, de manter esse rito infantil do deslumbramento sem horários, sem causas ou consequências. Os que vivem na rua podem cair em buracos, passar fome e frio, estender a mão à má consciência alheia, mas as grilhetas da subserviência e da vaidade não lhes atrapalham os passos. Não dobram a espinha a cargos ou mordomias. Olham as pessoas nos olhos para perceber de que são feitas. Podem pedir, mas não se vendem – quantos dos que vivem dentro de portas conhecem esta dignidade?
Para desgosto dos altos desígnios do turismo nacional, os que vivem na rua gostam de lugares bonitos. Gostam do Terreiro do Paço, por exemplo. Um desassossego. «Tirem-nos daqui! Tirem-nos daqui!», bradava há meses uma figura do efémero poder, agoniada. Enxotam-nos e eles voltam, como gaivotas, para a beira-rio. Indiferentes à repulsa dos outros, ao medo, que já não sabem o que é. Querem metê-los em camaratas, fechá-los no recato da caridade com uma sopa e um catre – e eles continuam a fugir para dormir sobre cartões num passeio da cidade. Porquê? Porque têm as estrelas a seu favor, e a solidariedade dos que, como eles, desistiram da vida dos cartões e dos deveres e da concorrência. Na rua ninguém pergunta, ninguém pede contas, não é preciso dar resposta. Na rua pode-se chorar sem ter de dizer porquê, sem termos de recordar porquê.
As equipas de rua conhecem bem cada uma destas pessoas, percorrem a cidade todas as noites do ano para os ouvir e lhes dar conforto, procurando ajudar, compreender cada história e cada alma, sem sermões nem ordens de «reintegração». É um trabalho lento, doloroso, discreto, contínuo, sem a visibilidade pimpona das obras de cimento, que dão votos. É o trabalho do amor, aquele que nunca está completo e que sempre nos fere. Sem-abrigo somos todos nós, e muito mais os que vivem sob o tecto do êxito obrigatório e agarrados às paredes do poder do que os que vivem na rua, sem nada e sem medo."
- INÊS PEDROSA, «Viver na Rua: Sem-Abrigo Somos Todos Nós», in revista Única, Expresso, Lisboa, 17 de Janeiro de 2009 (com adaptações)
Para desgosto dos altos desígnios do turismo nacional, os que vivem na rua gostam de lugares bonitos. Gostam do Terreiro do Paço, por exemplo. Um desassossego. «Tirem-nos daqui! Tirem-nos daqui!», bradava há meses uma figura do efémero poder, agoniada. Enxotam-nos e eles voltam, como gaivotas, para a beira-rio. Indiferentes à repulsa dos outros, ao medo, que já não sabem o que é. Querem metê-los em camaratas, fechá-los no recato da caridade com uma sopa e um catre – e eles continuam a fugir para dormir sobre cartões num passeio da cidade. Porquê? Porque têm as estrelas a seu favor, e a solidariedade dos que, como eles, desistiram da vida dos cartões e dos deveres e da concorrência. Na rua ninguém pergunta, ninguém pede contas, não é preciso dar resposta. Na rua pode-se chorar sem ter de dizer porquê, sem termos de recordar porquê.
As equipas de rua conhecem bem cada uma destas pessoas, percorrem a cidade todas as noites do ano para os ouvir e lhes dar conforto, procurando ajudar, compreender cada história e cada alma, sem sermões nem ordens de «reintegração». É um trabalho lento, doloroso, discreto, contínuo, sem a visibilidade pimpona das obras de cimento, que dão votos. É o trabalho do amor, aquele que nunca está completo e que sempre nos fere. Sem-abrigo somos todos nós, e muito mais os que vivem sob o tecto do êxito obrigatório e agarrados às paredes do poder do que os que vivem na rua, sem nada e sem medo."
- INÊS PEDROSA, «Viver na Rua: Sem-Abrigo Somos Todos Nós», in revista Única, Expresso, Lisboa, 17 de Janeiro de 2009 (com adaptações)
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Desculpe-me.
Desculpe. Desculpe-me.
Por aqui o céu está nublado e nenhuma luz o toca especialmente, mas deixe-me confessar-lhe que sempre achei que a palavra "nublado" tem o seu quê de poético. Depreendo que não esteja tudo muito diferente aí. Um dia pesado. Uma dor densa.
Soube tarde e soube muito longe.
Desculpe-me. Desculpe-me por não estar aí para lembrar como era bom ouvir a alegria na sua voz quando cantava para mim.
De certo aquele último abraço que me deu terá sido a melhor despedida que me poderia oferecer. Eu apertei-o com força. Espero que tenha sido a suficiente para nunca se esquecer de mim.
O maior beijo do mundo.
Estimo-o muito. Lembre-se: gostei sempre muito de si. Ainda gosto muito de si.
Por aqui o céu está nublado e nenhuma luz o toca especialmente, mas deixe-me confessar-lhe que sempre achei que a palavra "nublado" tem o seu quê de poético. Depreendo que não esteja tudo muito diferente aí. Um dia pesado. Uma dor densa.
Soube tarde e soube muito longe.
Desculpe-me. Desculpe-me por não estar aí para lembrar como era bom ouvir a alegria na sua voz quando cantava para mim.
De certo aquele último abraço que me deu terá sido a melhor despedida que me poderia oferecer. Eu apertei-o com força. Espero que tenha sido a suficiente para nunca se esquecer de mim.
O maior beijo do mundo.
Estimo-o muito. Lembre-se: gostei sempre muito de si. Ainda gosto muito de si.
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segunda-feira, 10 de janeiro de 2011
(nada)
Dir-te-ia que...
Em palavras, por partes,... Deixa-me começar. Quero dizer-te isto: (nada).
Não tenho palavras a morder-me a língua e no entanto reconheço o meu ponto de ebulição a norte. Quanto mais a norte... (nada).
Mas que norte? Este que... (nada).
A teia da aranha persegue a presa a parede o nada.
Em palavras, por partes,... Deixa-me começar. Quero dizer-te isto: (nada).
Não tenho palavras a morder-me a língua e no entanto reconheço o meu ponto de ebulição a norte. Quanto mais a norte... (nada).
Mas que norte? Este que... (nada).
A teia da aranha persegue a presa a parede o nada.
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