terça-feira, 27 de dezembro de 2011

"Monólogo a várias vozes"


"A vida é uma viagem, todos o sabemos. Navegação à vista que a rota não foi prevista e o mapa se vai revelando à medida que o tempo caminha. É desconhecido o destino, são incógnitos os portos, escassas as enseadas onde encontrar abrigo. O barqueiro tem uma venda, e cego, o barco prossegue arrastado por ventos e marés, ferido aqui e ali, por correntes e escolhos. Continuamos viagem sem saber bem o que nos guia e que porto demandamos. Pela minha parte, tento encontrar coerência no meu percurso, o sentido oculto, a harmonia que se deverá esconder por detrás de tudo."

- NUNO LOBO ANTUNES, in "Vida em Mim"

domingo, 4 de dezembro de 2011

Canção de alterne


E por tantas vezes dançamos todos
sem explicações coerentes ao som de uma privada canção de alterne que
alternadamente empurra um de dois contra o outro. Empurra-se depressa porque
longe estamos de apreciar vagarosamente o que mais queremos, se é que
se aprecia.
Despidos do velho compromisso
encontram-se tantos de luz apagada porque às claras já nada se entende. Pois
que visto o recreio de fora a sentença não muda.

365 à luz do corredor


Dali para o corredor onde a alegria e a malícia por vezes cresceram juntas podem-se recriar imagens sem conta. Desde o corpo acolchoado sobre braços voluntários, a mãos que tocavam o que seguia em frente, não deixando passar com descrição os sucessivos regressos e pacíficos abandonos de alguém com um compromisso na agenda.
Cedo, muito cedo começaram as viagens de deleite esfusiante às quais qualquer comparação faria o concorrente abandonar uma corrida em desvantagem. Das noites longas em curta duração saíram desejos por cumprir, diálogos a passear sobre o sono e o toque seguro entre quem não quer ter mais para onde ir.
Nesse corredor tudo se mistura. É o espelho do que foi, reflectido no lençol por enrugar que há-de sentir, talvez, o pulsar do contacto atrapalhado pelo que se diz não sentir.

Contabilidade da emoção

"Brincávamos a cair nos braços um do outro, como faziam as actrizes nos filmes com o Marlon ... Brando, e depois suspirávamos e ríamos sem saber que habituávamos o coração à dor. Queríamos o amor um pelo outro sem hesitações, como se a desgraça nos servisse bem e, a ver filmes, achávamos que o peito era todo em movimento e não sabíamos que a vida podia parar um dia. Eu ainda te disse que me doíam os braços e que, mesmo sendo o rapaz, o cansaço chegava e instalava-se no meu poço de medo. Tu rias e caías uma e outra vez à espera de acreditares apenas no que fosse mais imediato, quando os filmes acabavam, quando percebíamos que o mundo era feito de distância e tanto tempo vazio, tu ficavas muito feminina e abandonada e eu sofria mais ainda com isso. Estavas tão diferente de mim como se já tivesses partido e eu fosse apenas um local esquecido sem significado maior no teu caminho. Tu dizias que se morrêssemos juntos entraríamos juntos no paraíso e querias culpar-me por ser triste de outro modo, um modo mais perene, lento, covarde. Eu amava-te e julgava bem que amar era afeiçoar o corpo ao perigo. Caía eu nos teus braços, fazias um bigode no teu rosto como se fosses o Marlon Brando. Eu, que te descobria como se descobrem fantasias no inferno, não queria ser beijado pelo Marlon Brando e entrava numa combustão modesta que, às batidas do meu coração, iluminava o meu rosto como lâmpada falhando a minha mãe dizia-me, Valter tem cuidado, não brinques assim, vais partir uma perna, vais partir a cabeça, vais partir o coração. E estava certa, foi tudo verdade."
- VALTER HUGO MÃE, in "Contabilidade"