terça-feira, 20 de setembro de 2011

(texto perdido no tempo)

Nunca se viu nada assim pelas margens deste corpo. Os sinais atiram a culpa à biologia determinista, as rugas a uma mente fraca, a pele a um coração apaixonado. As entidades corporais têm receio de investigar, preocupadas com a mistura de indícios que se revela demasiado complicada de resolver. Só se conhece outro corpo assim, o que impossibilita uma investigação mais aprofundada, sendo ainda inexistentes fundos que a comparticipem.

sábado, 17 de setembro de 2011

(se fosse caso disso)

Abrir-te-ia a porta se fosse caso disso. Dou conta de mim sentada sobre as escadas, olhando de soslaio a ombreira da porta. Precisamente, de soslaio que se assim não fosse não estaria de braço dado com a descrição. Ou com a ânsia. De te não esperar.
Não se brinca com o amor, já o dizia Musset num outro idioma mais dado a clichés. Adiante.
De pernas coladas, ao chão e ao desamor, adivinhei o mais fácil. Que de previsibilidades antecipadamente antecipadas já se foi o mundo habituando. Contrariado, por certo, fechando um olho e abrindo o outro numa tentativa de evitar o já mais visto cruzar de braços. Porque se o corpo nos denuncia, a traição foi encomendada pelo próprio.
O volume de escadas adensa-se com o tempo. Estou certa que será uma mera ilusão, mas o tempo não pára e a porta não se abre e o tempo passa. A porta não se abriu ainda. E eu não me levantei, por céus!

sexta-feira, 16 de setembro de 2011

um Eu depois de um Tu


"Eu vinha povoado de supostos fantasmas
Trazia uma ou outra vingança por consumar
Nesses dias em que desocupado
De grandes desgraças traições anseios
Eu vinha apenas vindo quando te atravessaste
Intransponível
Nesse caminho que fazia só fazendo
Pouco alerta mudo impávido
Quando olhava sem bem olhar via só o que queria
Mesmo no que ver me custava acreditar
E foi quando o teu sorriso
Esse meio sorriso gioconda
Se tornou primeiro aos olhos depois ao tacto
Intransponível
E o caminho que fazia só indo desocupado
Esbarrou no que queríamos e vejo hoje
Mais que só olhar
Que o teu sorriso
Gioconda
Meio sorriso
É uma desgraça impávida
Límpido como não soubera haver uma boca
Como dizer líquida
Quase líquida
No pouco que lhe podemos saber
Meio sorriso permanente imutável
Que penso que é por nos amares
E por veres para além do que eu
Despovoado
Já sem grandes vinganças por consumar
Desvanecido
Quase líquido também
Que nos amares que nos amarmos
Poderá quem sabe matar anseios receios
De traições fantasmas
Serena certeza que líquida
Quase meia boca
Me faz o caminho só na tua direcção
Onde pareces saber que esperas
Serena
Gioconda
Que vamos durar sem mesmo sabermos
Dadas as mãos as mãos dadas
Intransponíveis
Serão duas aos olhos ao tacto parecem menos
E são tudo o que temos
E são tudo"

- RODRIGO GUEDES DE CARVALHO, in a Casa Quieta, Lisboa, Dom Quixote, 2005

quarta-feira, 14 de setembro de 2011

Uma força anímica tomou-lhe conta do corpo. Sendo patologicamente alérgica à dor, tudo nela bulia quando nesse estado de letargia. Revolvem-se correntes, sentem-se palpitações fora de tempo e uma contracção de vontades enlaçadas num nó que não se ata nem desata. Não se prescreve rigorosamente nada, dizem os sábios - anciães não reconhecidos - que o anti-histamínico, a existir, estaria no recôndito tempo. Que o tempo ameniza, que os segundos vagarosos acalmam a febre de quem engole sapos. Muito longe disso se encontra a crença de quem padece de tal alergia. Os olhos mingam de tão massacrados, o vermelho atiça-se-lhes sobre a cor original. O corpo recolhe-se à postura embrionária, fugindo à frente de combate sobre o inimigo que se ergue e ergue e ergue e impera por pele alheia. Articulações rígidas são fraqueza imediata. E os segundos passam, os dias vão aparecendo sob a forma de um hoje, de um amanhã, de um «já se passaram tantos meses».

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

«Escrever não é falar»

"«Ficam calados porque já não têm mais nada a dizer.»
- Mas tu não poupas palavras: tu escreves. Todas as noites gastas uma hora a escrever um diário nesse teu caderno...
- Escrever não é falar.
- Não? Qual é a diferença?
- É exactamente o oposto. Escrever é usar as palavras que se guardaram: se tu falares de mais, já não escreves, porque não te resta nada para dizer.
Anos mais tarde, já estava doente, voltei a lembrar-me dessa nossa conversa. Tinha acabado de te escrever uma carta - que nunca te cheguei a mandar e que destruí depois. E, escrevendo, poupei as coisas que gostaria de te ter dito e que gostaria que tivesses ouvido. Cheguei quase a convencer-me de que bastava escrever-te para tu me ouvires, mesmo que nunca tenha chegado a pôr a carta no correio. Porque era tão sentido e tão magoado, tão distante, o que te dizia nessas cartas, que quase acreditei que tu não podias deixar de me ouvir."

- MIGUEL SOUSA TAVARES, in "No Teu Deserto"

Encantos do adormecer

"E, depois, falávamos sobre a vida que tínhamos deixado para trás, interrompida por estes dias fora de tudo. Ou melhor, falavas tu, porque eu não tinha vida para te contrapor.
E de vez em quando, paravas de falar e perguntavas:
- Estou a ser chato?
- Não, não: continua a falar, que te estou a ouvir.
Mas vou-te confessar: ... escondia-me atrás dos óculos escuros e ia dormindo, embalada pela tua voz... e eu sentia-me tão bem assim, protegida pelo som da tua voz...irreal me parecia toda esta felicidade que não te sei dizer!"

- MIGUEL SOUSA TAVARES, in "No Teu Deserto"

quinta-feira, 8 de setembro de 2011

O escritor e a sua escrita

«Um escritor nunca esquece a primeira vez em que aceita umas moedas ou um elogio a troco de uma história. Nunca esquece a primeira vez em que sente no sangue o doce veneno da vaidade e acredita que, se conseguir que ninguém descubra a sua falta de talento, o sonho da literatura será capaz de lhe dar um tecto, um prato de comida quente ao fim do dia e aquilo por que mais anseia: ver o seu nome impresso num miserável pedaço de papel que certamente lhe sobreviverá. Um escritor está condenado a recordar esse momento pois nessa altura já está perdido e a sua alma tem preço.»


- CARLOS RUIZ ZAFON, in "O Jogo do Anjo"