domingo, 26 de dezembro de 2010

Manuel Alegre : «Quase um auto-retrato»

Manuel Alegre encanta-me...

"Aos vinte e poucos anos escrevi: “meu poema rimou com a minha vida”. Era ainda muito cedo, não sei sequer se é verdade, embora muitas coisas me tivessem já acontecido: amores, partidas, guerra, revoltas, "prisões baixas". O que mais tarde me levaria a dizer: "biografia a mais". Muito antes, lá pelos vinte, tinha lido uma frase de André Gide que me impressionou. Dizia ele: "a análise psicológica deixou de me interessar desde o dia em que cheguei à conclusão de que cada um é o que imagina que é." Até que ponto sou o que me imaginei ser? Se soubesse pintar (mas não sei) faria o meu auto-retrato a olhar para ontem, ou para dentro, ou para outro lado. Distraído-concentrado, presente-ausente, um não sei quê.

Acusam-me de altivez e narcisismo. É sobretudo reserva, timidez e uma incapacidade física de praticar uma certa forma portuguesa de hipocrisia e compadrio. Ou talvez um tique que herdei de família: levantar a cabeça, olhar a direito.

Tenho desde pequeno a obsessão da morte. Não o medo, mas a consciência aguda e permanente, sentida e vivida com todo o meu ser, de que tudo é transitório e efémero e não há outra eternidade senão a do momento que passa. Talvez por isso seja um homem de paixões. Mas não vivi nunca póstumo, nem me construí literariamente. Sei que nenhum verso vence a morte. E não acredito sequer na literatura.

Na poesia, sim. Mas como ritmo, como música interior, canto e encanto, incantação, exorcismo, uma forma de relação mágica com o mundo. A um professor brasileiro que trabalhava numa tese sobre mim, respondi: "Escrita e vida são inseparáveis. Embora eu entenda a poesia como experiência mágica, algo que está aquém e além da literatura."

Penso, como Teixeira de Pascoais, que "o ritmo é a substância das cousas" e que "a poesia nasceu da dança." Talvez por isso eu goste de flamenco, a música e a dança que estão mais perto do ritmo primordial, da batida do coração e da própria pulsação da terra. Gosto de flamenco e de um certo tipo de fado e dos tangos de Francisco Canaro. E também de Bach e Mozart. Pelas mesmas razões: o ritmo. E da poesia de Lorca que, ao contrário de ideias feitas, nada tem de folclórico ou regionalista, antes se aproxima das energias primitivas e essenciais e é quase, como diria ainda o autor de Marânus, "um bailado de palavras."

Não sei se, como queria Rimbaud, consegui fazer "coincidir a essência da poesia com a existência do poema." Cantei, canto. Demanda, errância. Não há senão esse procurar. Na vida, na escrita. Quando faço aquilo de que gosto, faço-o intensamente. A pesca, por exemplo. Ou a viagem. Ou a partilha: um bom jantar em família com alguns amigos, uma reunião conspirativa, a camaradagem na nunca perdida ilusão de que a revolução ainda é necessária e possível.

Diria que é outra forma de escrita. Intensa, densa, tensa. Como o amor. E talvez a morte.

Herdei de minha mãe uma certa energia, o gosto da intervenção. De meu pai, o desprendimento, uma irresistível e por vezes perigosa tendência para o desinteresse. Inclusivamente pelos bens materiais. Não é por acaso que só me prendo realmente ao que poderia chamar as minhas armas: espingardas propriamente ditas, "gostei muito de caçar", canas de pesca, carretos, canetas, livros (alguns livros), discos. Os grandes espaços: o deserto, o Atlântico, o Alentejo. E sítios. Certas cidades. Outrora agora: Coimbra, Paris, Roma, Veneza, Lisboa. Certos lugares: o Largo do Botaréu, em Águeda, o rio, a ria (de Aveiro), Barra, Costa Nova. Mais recentemente: Foz do Arelho, Barragem de Santa Clara. Certos recantos: a minha casa de Águeda, o solar, já perdido, da minha avó, em S. Pedro do Sul, as casas da minha tia e meus primos na Anadia, a casa de Sophia, a minha casa em Lisboa. A minha mulher, os meus filhos, a minha irmã, os meus amigos. Uma grande saudade dos que morreram, principalmente de meu pai, a quem, por pudor e reserva (somos parecidos), nunca cheguei a dizer em vida o que gostaria de lhe dizer aqui."

- MANUEL ALEGRE, "Quase um auto-retrato"

domingo, 12 de dezembro de 2010

"Arte Poética"

Fazer do teu verso
um arco tenso
e das palavras
flechas.

- PEDRO MEXIA (n. 1972), Avalanche, 2001.

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

A clonalidade no amor

Às vezes tropeço nesta ideia de que a rapidez é inimiga do amor. Não sei se sim. Tudo o que tenho corresponde ao que eu mais queria e a tudo o que me faltava. O que não tive, quiçá. Porque está tudo de acordo e os contras não têm o tamanho dos prós. Não há força que elimine um laço simétrico, e peço desculpa ao laço porque a palavra «simétrico» rouba-lhe toda a graciosidade e dá a ideia errada de um sentimento que se pode medir. Mas então ouçam-me: não podem tirar as medidas a esta propriedade metafísica que nos pertence. Até podem tentar, mas não vão descobrir todos os pontos de contacto que se construiram. São demais. Como propriedade, têm a clonadidade a reinar. Os nossos pontos de contacto clonam-se, clonam-se, clonam-se. Estão a clonar-se, clonaram-se milhões de vezes em qualquer segundo de atenção que vos ficou por aqui. É perceptível o que estou a dizer? Ou é algo demasiado intenso para que vos consiga explicar?

domingo, 5 de dezembro de 2010

Conta-Corrente

Obrigada Virgílio. De repente, já não me sinto tão estranha por equacionar tudo o que existe à nossa volta!

"Não, não é bem o vazio: é a mineralização do mais dúctil e fugidio em nós. É a incapacidade de olhar uma flor ou o espaço azul e comover-me. Todo o mundo vibra de uma forma intensa de milagre e é difícil centrarmo-nos onde o milagre acontece. Uma flor. A vida intrínseca e vertiginosa do que nela se realiza na sua cor original, na sua forma incrível, no perfume com que respira. Então, quando o vejo, comovo-me até às lágrimas. Mas é preciso desbastar uma camada grossa de urgências, de hábitos mecânicos, de naturalidade. E a vida não é natural. Nós habituamo-nos a tudo, como se tudo tivesse evidentemente de ser assim. Um homem junta-se a uma mulher e nasce um filho. Há centenas de milhares de anos que isto acontece. E nunca ninguém se mostrou intrigado. Intrigam-se é com as heranças e as infidelidades e coisas assim. Não com o facto fantástico de nascer uma criança. De longe em longe lá aparece um tipo a mostrar-se espantado por haver gente e bichos e estrelas. O menos que se lhe chama é reaccionário e tarado. A ordem da vida é a normalidade. Tudo o que for além disso é que é estranho. Mas o que vai além disso é uma ridicularia. O fantástico está antes."

- VIRGÍLIO FERREIRA, "Conta-Corrente II" (1977-1979)