quinta-feira, 29 de abril de 2010

Viajar - intervalo!

Vou passear durante 4 dias. Vou passear um bocadinho pela Alemanha e quem sabe se no entretanto não chego finalmente a ir a Londres!

Mas olhem: esperem por mim!

segunda-feira, 26 de abril de 2010

"Se ao menos pudesse ocupar-te sem a estranheza da dor, acordar de novo dentro da tua cabeça, tão interior à minha que nem pressentiste que eu podia estar a desaparecer. Foi o Pascoal quem o pressentiu. O Pascoal que vive entre notas de música e gritos de dor, o Pascoal médico que substituiu o sentido pela salvação, e que adormece diariamente com um morto a menos sobre os sonhos. Quis salvar-me, eu não deixei, e agora tem remorsos - o prémio contínuo da sobrevivência. Tu dir-lhe-ás:

- Não podias fazer nada, esquece.

Tu és o único que não me pode esquecer. Esquecemos alguma vez uma parte do que somos? Esquecemos apenas o que podemos isolar na lembrança - e há muito tempo que tu já nem sequer te lembravas de mim. Se desviar os olhos do presente de ti encontro-te na ressaca da nossa amizade, comentando o meu arrivismo ou o meu mau gosto com algum conhecido de passagem.

Ou deixando comentar, o que é o mesmo. Por isso não posso desviar-me do que fomos, a sós, a dois. Para apagar do céu as palavras más que também eu disse ou deixei dizer sobre ti.

Tantas, tão pobres nos seus andrajos de cobardia.

Trago-te no riso enterrado. Nas lágrimas que me lançaste, escadas de incêndio para a sabedoria da felicidade, na pele escaldada pelo brilho da noite, depois do mar. Falámos demasiado para que eu recorde do que falámos, vivemos demasiadas vidas para que eu as possa separar. Para que eu me possa separar de ti. A memória tende a desfibrar-se, víscera velha, nesta condição a que chamarei apenas imaterial para não te assustar. Vejo tudo, continuamente, o espectáculo da vida interfere com os sentidos da minha deambulação ao passado.
Mas o que é o passado?"

INÊS PEDROSA, in "Fazes-me Falta"
"Ensaiava os arranjos, queria saber se a canção estava perfeita. Convidava às vezes amigos, poucos, para estas ante-estreias secretas em que surgia com uma ansiedade de pássaro, quase tímido, como se também ele fosse muito novo e tudo pudesse ser muito importante. Tu não estavas lá, mas depois, quando começaste a estar, eu cantava-te essa canção sempre que voltávamos para casa - sempre que tu me deixavas em casa - ao amanhecer. Cruzávamos a cidade à hora em que a luz do sol se mistura com a cinza amarela dos candeeiros.

Respirávamos o ar lavado dessas primeiras horas, um ar molhado que fazia brilhar os carris dos eléctricos e inundava de rosa velho as persianas corridas. Tinhas medo do escuro, tu. Por isso te deitavas de manhã, eu muitas vezes nem isso, tomava um duche e ia à luta. Agora já não posso dormir, velo-te o sono sem saber a quem velar. Adormeces ao som das minhas cantigas, depois do Pascoal o Brel, o Aznavour da Veneza dos amores mortos, canções ligeiras, cançonetas de comover porteiras, dizias tu, cançonetas que sossegam agora o teu interdito coração de porteira e me gritam que já nada posso por ti, por mim, pelas horas todas que nos esquecemos de viver."
INÊS PEDROSA, in "Fazes-me Falta"

quarta-feira, 21 de abril de 2010

John Mayer? EU VOU!

Falta precisamente um mês para o concerto dele! Há alguns anos que estava à espera e finalmente vou conseguir vê-lo! Vai ser uma grande grande grande grande grande noite!
São coisas como estas [fotografia] que me fazem apreciar tanto a música dele que prefiro na maior parte das vezes ao vivo.
Quem não conhece a fama de playboy que ele tem? O que interessa é que quando a música começa ele parece quase outro e não há nada que não esteja perfeito. Desde os solos de guitarra à voz, os longos minutos em que só existem acordes harmoniosos, os momentos em que parece existir uma simbiose entre ele e a música, quando o coro da assistência é quase tão forte quanto a emoção que ele coloca em palco. A mim faz-me recordar um infinito número de memórias e é a minha principal companhia nas viagens.
Até dia 21! EU VOU!

terça-feira, 20 de abril de 2010

Publicidades


"Um dia, o mais provável é tornares-te num chato, deixares de sair à noite e começares a levar-te demasiado a sério. Nesse dia, vais começar a vestir cinzento e bege, pedir para baixar o volume da música e deixar a tua guitarra a apanhar pó. Vais tornar-te politicamente correcto, socialmente evoluído, economicamente consciente. Vais achar que tens de ir para onde toda a gente vai e assumir que tens de usar fato e gravata todos os dias. Nesse dia, vais deixar de beijar em público, as tuas viagens serão mais vezes no sofá e dormirás menos ao relento. É oficial. Vais entrar na idade do chinelo e deixar de ser quem foste até então. Vais deixar de te sentar ao colo dos amigos e vais esquecer-te de como se faz um quantos-queres ou um barco de papel. Vais ficar nervosinho se não trocares de carro de quatro em quatro anos e desatinar se o hotel onde estiveres não te der toalhas para o teu macio e hidratado rosto. Vais tornar-te muito crescido e começar a preocupar-te com tudo e com nada e a não fazer nada porque "vai-se andando" e a vida é mesmo assim. Vais dizer não mais vezes, vais ter mais medo, vais achar que não podes, que tens vergonha. Vais ser mais triste.
Nesse dia, o mais provável é que também deixes de beber refrigerantes.
Aqui fica uma ideia: quando esse dia chegar, não lhe fales." (Manifesto "Mantém-te original" da Sumol)


Encontrei-a na folha exterior do Jornal Metro e achei graça.
Apesar de não ser das melhores coisas que por aí andam em termos de publicidade, achei que era uma abordagem diferente!
(ao ler algumas das coisas, quase dizia que já tinha chegado esse dia!)

(Um beijinho de parabéns à minha Sofia lisboeta e ao Zé :)

Como o futuro passeia em mim

Está longe essa noção de definição. Sumiu-se a fronteira do que estava e ergueu-se um muro consistente.
Em quantas mansardas não anda a vida metida? Em quantos labirintos não se constroem caminhos errados que servirão como indicação de que o certo tem outras coordenadas?
Da mesma forma que a areia me escapa entre os dedos, estou a tentar deixar que esse futuro me escorregue pelas lacunas que crio e nada ainda preencheu por completo. É a única forma que encontrei para que se desvaneça a nítida imagem de um outro querer.

segunda-feira, 19 de abril de 2010

About writing

"A escrita é, nos dias bons, uma seta de longo alcance – ilumina (ou consola, ou desperta) almas
desconhecidas. Mas quase sempre assusta e afasta os próximos, porque nasce de um poço de silêncio impartilhável."
INÊS PEDROSA, in Jornal Expresso

domingo, 18 de abril de 2010

Obrigada !

Esta foi uma brincadeira criada pela autora do blog
http://milka-caramelo.blogspot.com/

Quanto a mim, um obrigada à Joana Macedo por me referenciar!


As regras são:

1. Enumeras 3 sonhos:
Conhecer o mundo!
Usar a palavra felicidade todos os dias, a todas as horas, e em tudo, por poder senti-la!
Fazer tudo e mais alguma coisa: o teatro, a dança, a escrita, a leitura, a saúde aliada às minhas crianças,...


2. Enumeras 3 pecados/tentações:
Gula
Ingenuidade
Insegurança


3. Nomear 6 blogs que aches espectaculares:
A Fuga das Palavras - http://afugadaspalavras.blogspot.com/
all… for you - http://oamoreazulzinho.blogspot.com/
Assalta-me por momentos - http://assaltamepormomentos.blogspot.com/
James & Malro - http://james-malro.blogspot.com/
o meu nome nome não é alice - http://o-meu-nome-nao-e-alice.blogspot.com/
The Little Things - http://marijuana-m.blogspot.com/

sábado, 17 de abril de 2010

Por entre palavras antigas

Este é um dos que mais gostei de escrever, sabe-me a muito. Lembro-me de quando o escrevi, estou a ver-me a pôr as palavras em ordem naquele dia. Encontrei-o à pouco, quando fui remexer em escritas antigas:


Ela estava completamente alheada do que a rodeava. Só a brisa ainda a fazia sentir-se acordada. Enquanto as ondas rebentavam, revoltas, e as crianças corriam em direcção à meta, ela permanecia imóvel, fitando o horizonte, a linha tão imaginária quanto a sua felicidade.
Havia dias desde o último sorriso que se lembrava de esboçar: natural, sincero, espontâneo. Lembra-se bem: ele olhou para ela, afastou a madeixa de cabelo que lhe escondia a expressão e disse, no tom mais apaixonado que ela lhe conhecia, que a amava. Depois, colou os seus lábios à sua pele num beijo demorado e ternurento. Foi aí que sorriu, imediatamente antes de ele se afastar.
Foi desde essa noite, em que o frio característico se opunha ao calor dos sentimentos, que ela se encheu do maior vazio que já havia experimentado. Passava os dias ali, na praia, na esperança de ter o mais curto pousar de olhos sobre a figura dele. Em boa verdade, não sabia o que fazer se o visse, se devia falar, dirigir-se a ele ou continuar o que ele começou.
O adeus. Foi o que de mais ingrato ele lhe poderia oferecer. Naquele momento, sentiu uma dor desmedida na voz dele e por muito que agora se arrependesse por não ter tentado impedi-lo, na altura não foi sequer capaz de pensar. A dura realidade tomou-a de assalto e ela sucumbiu a um terrível estado de incredulidade. E, na impossibilidade de se debater, viu-o partir.
Agora era tarde, mas ela era incapaz de deixar libertar o sofrimento que ele lhe provocou. Porque se assim fosse, em breve ela esqueceria o rosto, o cheiro, a imagem, os sentimentos. Deixar-se sofrer obrigava-a a recordar cada momento que haviam partilhado. E assim, tudo o que restava da sua história era mais lentamente apagado. Os contornos iriam permanecer, tempo nenhum os poderia apagar, mas tudo o resto, todos os pormenores, mais ou menos importantes, iriam involuntariamente abandoná-la.
E ele? Seria ele indiferente a todos os detalhes que dela pudesse perder? Estaria, ou não, disposto a deixá-la afogada na maior das dores? No maior dos sofrimentos? Até onde estaria ele disposto a permitir o fim do que nunca deveria sequer ter terminado? Não, ela não fazia a mais pequena ideia. E sem querer, estas dúvidas ocupavam-na durante todo o dia, a qualquer que fosse a hora.

sexta-feira, 16 de abril de 2010

«Conduziu durante duas horas por estradas escuras com a rádio ligada, a ouvir uma emissora de Phoenix que transmitia jazz. Passou por lugares onde havia casas, restaurantes e jardins com flores brancas e carros mal estacionados, mas nos quais não se via luz nenhuma, como se os habitantes tivessem morrido nessa mesma noite e no ar ainda restasse um hálito de sangue. Distinguiu silhuetas de cerros recortadas pelo luar e silhuetas de nuvens baixas que não se moviam ou que, em determinado momento, corriam para oeste como que impelidas por um vento repentino, que levantava poeirada a que os faróis do carro, ou as sombras que os faróis produziam, emprestavam roupagens fabulosas, humanas, como se as poeiradas fossem mendigos ou fantasmas que saltavam junto ao caminho.Perdeu-se duas vezes. Numa, esteve tentado a voltar para trás, para o restaurante ou para Tucson. Na outra, chegou a uma terra chamada Patagonia onde o rapaz que atendia na bomba de gasolina lhe indicou a maneira mais fácil de chegar a Santa Teresa. Quando saiu de Patagonia viu um cavalo. Quando os faróis do carro o iluminaram o cavalo levantou a cabeça e olhou para ele. Fate parou o carro e esperou. O cavalo era preto e ao fim de pouco tempo mexeu-se e perdeu-se na escuridão. Passou junto a uma meseta, ou pelo menos assim julgou. A meseta era enorme, totalmente plana na parte superior e de uma ponta à outra da base devia medir pelo menos cinco quilómetros. Junto à estrada apareceu um barranco. Saiu, deixou as luzes do carro acesas e urinou longamente respirando o ar fresco da noite. Depois o caminho desceu até uma espécie de vale que lhe pareceu, à primeira vista, gigantesco. Na ponta mais afastada do vale julgou discernir uma luminosidade. Mas podia ser qualquer coisa. Uma caravana de camiões a mover-se com grande lentidão, as primeiras luzes de uma localidade. Ou talvez só o seu desejo de sair daquela escuridão que de alguma maneira lhe fazia lembrar a sua infância e a sua adolescência. Pensou que houve uma altura, entre uma e outra, que chegou a sonhar com aquela paisagem, não tão escura, não tão desértica, mas certamente semelhante.Ia num autocarro, com a mãe e uma irmã da mãe e faziam uma viagem curta, entre Nova Iorque e uma localidade próxima de Nova Iorque. Ia junto à janela e a paisagem invariavelmente era a mesma, edifícios e auto-estradas, até que de repente apareceu o campo. Nesse momento, ou talvez antes, tinha começado a entardecer e ele olhava para as árvores, um bosque pequeno, mas que aos seus olhos aumentava. E então julgou ver um homem a caminhar à beira do pequeno bosque. Com grandes passadas, como se não quisesse que a noite lhe caísse em cima. Perguntou a si mesmo quem seria aquele homem. Só soube que era um homem e não uma sombra, porque ele tinha uma camisa e mexia os braços ao caminhar. A solidão do homem era tão grande que Fate se lembrava que desejou não continuar a olhar e abraçar a sua mãe, mas em vez disso manteve os olhos abertos até o autocarro deixar o bosque para trás e aparecerem de novo os edifícios, as fábricas, os armazéns que balizavam a estrada.A solidão do vale que atravessava agora, a sua escuridão, eram maiores. Imaginou-se a si mesmo a caminhar a bom passo pela berma. Sentiu um calafrio. Recordou então o jarrão onde jaziam as cinzas da mãe e a chávena de café da vizinha que não devolvera e que agora estaria infinitamente fria e os vídeos da mãe que já ninguém iria ver nunca mais. Pensou em parar o carro e esperar que amanhecesse. O instinto indicou-lhe que um local com um preto a dormir num carro alugado junto a uma berma não era o mais prudente no Arizona. Mudou de emissora. Uma voz em espanhol começou a contar a história de uma cantora de Gómez Palacio que havia voltado à sua cidade, no estado de Durango, só para se suicidar. Depois ouviu-se a voz de uma mulher que cantava rancheras. Durante um bocado, enquanto conduzia para o vale, esteve a ouvi-la. Depois tentou voltar a sintonizar a emissora de jazz de Phoenix e já não conseguiu encontrá-la.»

ROBERTO BOLAÑO, in "2666"

Nostalgic


Coldplay - Sparks


o iPod levou-me a ouvi-la na minha viagem matinal! É daquelas nostálgicas!

quarta-feira, 14 de abril de 2010

(fotografia de Rui David)

« Foi num fim-de-tarde de Outono com restos de Verão. O pulôver que, à cautela, saíra de casa comigo, repousava no banco do parque e Joana sacudia os braços nus depois de os mergulhar na água do lago. As folhas secas expulsas das árvores confirmavam o calendário mas a mornidão e quietude do ar, cativando aromas das plantas regadas ao longo das alamedas, desdiziam as tristonhas famas outoniças.
- Anda ver, Pedro! – chamou Joana em alvoroço. Rãs, rãs tão pequeninas e lustrosas que mais parecem imitações de porcelana.
Não fui. Veio ela, saltitante como uma garota em recreio infantil, os cabelos pretos pulando à medida dos pulos, o riso aberto legendando a traquinice. Passou pela minha cabeça a mão molhada, sentou-se e mordiscou-me no lóbulo da orelha.
Nunca eu sentira tão forte o desejo de imobilizar o tempo. Que bom, se tudo permanecesse assim, sempre, sem horas de relógio e dias seguintes empurrando para trás momentos insubstituíveis. Tão vã ambição, conhecera-a ainda criança, quando minha irmã Loreta regressou a casa, meia semana depois da madrugada em que nos fugiu, sem explicação nem adeus, com o trompetista da banda em que o nosso pai soprava saxofone. Na tarde em que a filha voltou, ele não disse nada. Ou disse tudo, num abanar de cabeça que misturava censura e perdão, antes do solo de sax que soou como toque de boas-vindas. Loreta e eu apertámo-nos num abraço chorado e foi nesse fruir do reencontro que, pela primeira vez, eu pedi ao tempo que parasse.
É certo que, nos fervores da juventude, em noitadas de alegria e riso, tornei a ambicionar que não houvesse manhã à espera. Mas só agora, olhando Joana, atingia a plenitude do bem-estar na vontade de tudo continuar assim, definitivamente.
Acercou-se de nós um casal de turistas, de indefinida terra estrangeira mas definidos na condição de turistas, ela e ele de calções, sandálias, camisetas garridas, mochilas e bonés de pala. Queriam saber como chegar ao Chiado, e Joana apontou sugerindo caminhada a pé, a descer o parque e avenida central da cidade, até ao Rossio, praça nobre que deviam conhecer, daí a rua breve subindo a colina. Lá foram, não sem antes nos fotografarem com um telemóvel, admirável facilidade esta de guardar pedacinhos do tempo.
Foi nesse preciso e impensável momento que Joana me fitou com uma expressão grave e disse:
- Pedro, vou deixar-te.
Não entendi, logo, logo, o alcance da declaração.
Ocorreu-me que ia afastar-se por momentos, depois que se apressava para a nossa casa, onde, é verdade, a mãe dela prometera levar-nos uma travessa de arroz doce. Continuei a sorrir.
- E espero-te aqui?
Ela baixou a cabeça, passou os dedos pelos cabelos e, pareceu-me, a voz tremia-lhe um pouco;
- Não me esperes mais. Quero que compreendas Pedro, a nossa relação chegou ao fim.
Poucas vezes a metáfora do soco no estômago terá sido tão apropriada. Senti dor e espanto, sufocação. As palavras bateram-me na mente – “a nossa relação chegou ao fim” – sem apagarem a incredulidade a que me agarrava ainda. Julgava eu termos atingido o ponto mais alto do entendimento e da felicidade e, afinal, a relação como ela lhe chamava, desmoronava-se sem causa nem aviso. Balbuciei:
- O que foi? Que fiz?
Ela sentou-se na calçada, os braços entrelaçando as pernas, depois falou sem me olhar:
- O tédio, Pedro. Não te culpo, talvez, seja defeito meu mas não suporto o tédio, as rotinas, os diálogos repetidos, o nada de novo. É melhor guardarmos, antes que se destrua, a nossa forte amizade.
Amizade? O que eu considerava amor profundo, raro e mútuo alcunhava-o ela agora de amizade. Não percebi se a minha revolta era maior que o desgosto mas havia duas lágrimas insistentes nos meus olhos. Ficámos assim, em silêncio, um tempo longo e amargo. O meu cérebro, porém, atropelava-se à procura de explicações e de uma atitude. Que fazer? Discutir seria penoso, implorar não se coaduna com o meu carácter. Pensei, pensei. Joana parecia-me tranquila, segura, como se acabasse de fazer o que tinha de ser feito.
Quebrei o silêncio:
- Os bons espíritos econtram-se – disse, forçando um sorriso.
- Como?
- Joana, minha querida, tu apenas te antecipaste. Eu ia dizer-te, justamente, que chegou o momento do adeus. Ainda bem que, uma vez mais, estamos em tão perfeito acordo.
Iria jurar que os olhos dela cresceram desenhando uma imagem de assombro. Murmurou:
- Tu ias deixar-me?
- Chegou a hora.
- Mas porquê? Dei-te algum motivo? – O tom de voz era quase choroso e o queixo tremia-lhe.
- Nada, nada. Não sei explicar, Joana, apenas sinto que é a melhor decisão.
Ela ergeu-se e veio, em passos lentos, sentar-se ao meu lado.
- É a Margarida?
Nada se alterou no meu rosto mas ri por dentro. Margarida, uma amiga comum, era a ameaça inventada por Joana. Ciúmes sem sentido desde a noite em que Margarida, meio embriagada, remexeu a mão entre as minhas virilhas.
- A Margarida não tem nada a ver com isto.
Então ela chegou-se mais, passou um braço em torno da cintura:
- Já não gostas de mim? É isso? Diz então, Pedro.
Não disse, seria mentira. Disse ela:
- Tanto amor, Pedro, tantas palavras e no fim...
Encostou a cara no meu pescoço hirto e senti que tremia.
Soltei-me dela com algum esforço e rematei:
- Foi tudo verdadeiro e bom. Agora acabou.
Dei dois passos de retirada mas Joana não deixou. Enganchou-se em mim e repetia, soluçante:
- Não, não, não. Isto não pode estar a acontecer.
Esperei um pouco e ela marcou o rumo:
- Vamos, Pedro. Vamos para a nossa casa.
Assim caminhámos, colados e lentos, ela sussurando juras de amor, eu afagando-lhe a cabeça sobre o meu ombro. E o tempo voltou a parar. »


MÁRIO ZAMBUJAL, "Duelo no Parque"

terça-feira, 13 de abril de 2010

602

Yeah I loved it.




You made me love you, you made me let you in and then...
Amor e esforço não rimam. O amor acopla-se à música do acaso, o esforço não. O amor obedece à estrutura rítmica que os olhos dos amantes criam quando se encontram. Procuram-se um ao outro, o olhar um do outro, mais do que discretamente. Não é o ritmo da cabeça dele em direcção à dela que vence, ou vice-versa. O ritmo dos dois altera-se até descobrirem um compasso confortável a ambos. Depois ficam-se perdidos algures entre o espaço e o tempo. Ninguém sabe. Nem eles.

segunda-feira, 12 de abril de 2010

«Haverá noite para este dia digam-me, uma altura em que deixo de distinguir o salgueiro e depois do salgueiro a janela, os móveis desaparecem porque não acendemos a luz, ficam as pegas de metal a brilhar um momento, um frémito nas portas que ninguém gira, os meus irmãos procurando-se e eu em busca da saída dado que principiaram as dores e não acho o caminho da rua, apercebo-me do alpendre onde a lanterna baloiça na corrente, ao regressar ao baldio via-a na esquina e acalmava, estou a chegar, estou em casa, não me fazem mal já, o quintal fechava-se-me sobre o corpo e escondia-me, nenhuma cólica, nenhum suor, a paz e com a paz a indecisão da madrugada no peitoril
- Nasço não nasço?
a desistir, a pensar melhor e a mostrar um esboço de trepadeiras, que parentes no velório amontoando guarda-chuvas no pote enquanto o meu irmão Francisco modifica os livros das contas, não apenas guarda-chuvas, sobretudos que escorrem turvas lágrimas lentas, se calhar com dinheiro nos bolsos (oxalá que dinheiro nos bolsos) e a Mercília a ver-me procurá-lo indignada, explicar-lhe
- Não quiseram o que estava na tua mala sabias?
e as bengalas mais duras no tapete
- Nunca tiveste nada que prestasse és pobre
a minha irmã Beatriz indignada igualmente
(um automóvel frente às ondas e o marido a compor-se, a certeza de não haver dia para essa noite e lágrimas substituídas por um
- E agora?
sem fim)
uma ocasião roubei os botões de punho ao meu pai e em vez de ralhar-me a expressão dele
- Filha
compreensivo o cretino eu que não preciso de compreensão, quero lá saber que compreenda, preciso de, não preciso seja do que for e não me venham com tratamentos, tratamentos a quê, ando óptima, mesmo que não tivesse família e morasse sozinha, sem a lanterna do alpendre a anunciar de longe
- Estás quase salva Ana
(a propósito de lanterna quanto valerá aquilo, poeirento de besoiros queimados?)
era feliz garanto, emagreci, é normal, aumentaram-me os ossos, se não me apetecer ir ao baldio não vou e acabou-se, a minha mãe para o meu pai que hesitava entre eu e o Casino isto é o que julgava ser droga e o dezassete que a bolinha recusa
- Os botões de punho que te dei?
os olhos do meu pai noutro lado sem deixar de fitá-la para que não pensassem em mim
(não me rala que pensem em mim)
vasculhando mentiras, se tivesse o cavalo a jeito fazia sombra no mar e não se lhe notava a cara, o barulho dos cascos quatro corações desengonçados e cada um
- Filha
não senti um pito quando faleceu, o que devia sentir, almoçava com os empregados feito da massa deles que mal sabiam falar e obedeciam sem revolta, acompanhava-os no baralho de que não se distinguiam os naipes atirando do alto uma manilha, um valete, um camponês chapado, uma espécie de bicho, que esquisito nascer de você, a minha mãe com a senhora das unhas toda gorjeios, risinhos, o meu pai sofria por eu não cumprimentar os colegas, ao mencioná-los não
- Os meus empregados
uma camaradagem que me punha os nervos em tiras
- Os meus colegas filha
não conversava e nas poucas alturas em que lhe escutei uma palavra
- Filha
o meu pai para a minha mãe a fingir admirar-se com a ausência dos botões
- Hei-de ver se os encontro
ou seja comprar uns iguais na vila ou que pelo menos dessem ar dos antigos, desenhou-os nas costas de um envelope
- Losangos de oiro com uma pedra no meio
quando era mais simples ir ao baldio por eles a magoar-se nos arbustos, repare nos meus braços onde não são só as picadas, são os espinhos, os galhos, pode ser que descubra o que vende o pó, negoceie, rebata e Deus queira que os pretos lhe joguem latas em cima, não senti um pito quando faleceu e não sinto um pito agora, talvez o medo de não haver noite para este dia e a minha mãe morta na cama sem gorjeios nem risinhos, torcida e de queixo aberto que eu vi
(nunca me ocorreu que lhe faltassem dentes calcule e sem a pintura tantas rugas, que idade tem você mãe, não disfarce a idade)
a camisa de rendas, dantes justa, a sobrar-lhe no peito, os meus irmãos procurando-se e os colegas do meu pai a trotarem para mim com os corações dos cascos desengonçados, dúzias de corações que me agitam o sangue, o do baldio
- Quanto?
desdenhando a oferta e o homem da gabardina a acordar no degrau puxando-lhe o casaco
- Trabalhei nos guindastes sabia?
a encher o ar de roldanas, a adormecer de novo e as roldanas mudas, apesar do Tejo nenhuma gaivota aqui, escapam-se de nós, evitam-nos, lagartixas, pardais, um cachorro ou dois claro, isto é um país de cachorros, tudo ladra senhores, até eu se a febre sobe, a gemer
(os animais não se suicidam porquê?)
não sinto um pito para além das dores, das cólicas e da alegria depois da seringa, não bem alegria aliás, uma espécie de sossego, o que vende o pó
-Anda cá
e não me importa ir, não o ajudo nem o empurro
(ajudaste o teu marido Beatriz?)
espreito-lhe sobre o ombro as nuvens que se fazem e desfazem exactamente como a vida e a sombra delas, não dos cavalos, em mim,
a minha pele escurece ao passarem e aclara-se intacta
(não vou morrer pois não?)
ao contrário da minha mãe nenhuma ruga por enquanto, a cicatriz na sobrancelha da queda em criança e a Mercília a segurar-me os cotovelos num gabinete com ferramentas num armário, o médico que tresandava a zaragatoa de anginas
(todos os médicos tresandam a zaragatoa de anginas e a borato de sódio)
munido de uma agulha curva no vértice de uma pinça
- Quieta
a consertar-me a ferida, a minha irmã Rita levantava uma ponta do adesivo
- Deixa ver o golpe
num horror fascinado, o meu pai quase
- Filha
a segurar as mãos uma na outra numa angústia que se palpava sem se atrever a espreitar
(livre-se de espreitar)
as mãos cheias de gordura e sangue com que ajudava os toiros pequenos a saírem das vacas, entendia-se que os animais sofriam porque uma das patas não cessava de tremer e as narinas pingavam, o meu irmão João admirado de canguru de borracha suspenso nos dedos, qual o motivo do céu não azul em lugar desta chuva, gotas que se acrescentam às gotas a espessarem o vidro impedindo-me de perceber o meu pai
- Macho ou fêmea?
limpando a cara na manga, interrogo-me se foi assim comigo
- Macho ou fêmea?
limpando a cara na manga, o maioral enquanto tento levantar-me nas perninhas que vergam, não conseguem, conseguem
- Fêmea
e a minha mãe que vai morrer a lamber-me cansada, choverá até quando neste domingo de Páscoa, no baldio, mesmo com chuva
- Anda cá
e eu a espreitar-lhe sobre o ombro os pingos na lona agarrando ervas húmidas, o que pensará a minha mãe nesta altura, aposto que não há espaço nela para pensar e no entanto suponho que gorjeios, risinhos, uma palavra feita pedido de esmola ao telefone
- Porquê?
porque o mundo não se incomoda com a gente senhora nem com a gota que tomba de cada vez que um
- Porquê?
numa parte da minha mãe que nem estou certa que exista, o que sobeja quando não existimos, em que pensarei eu, este livro é o teu testamento António Lobo Antunes, não embelezes, não inventes, o teu último livro, o que amarelece por aí quando não existires, como esta casa é triste às três horas da tarde, toque na fêmea pai em lugar de tocar-me que ela sim, sua filha, não tenho pai, tenho uma colher na despensa com um isqueiro por baixo, um êmbolo, um elástico, um limão espremido e você tinha os cavalos e o dezassete fora da roleta, escolheu um número que não há, uma mulher que não há, filhos que não há, há os toiros mas os toiros são pedras moendo os campos com a boca, não há toiros também, o meu irmão Francisco a rasurar os livros, a soprar o pó da rasura e a escrever por cima, ao passar diante dele não levantou a cabeça, uma sobrancelha apenas, a cabeça no papel e a sobrancelha a mirar-me, o meu pai lavava-se na torneira do estábulo molhando as polainas, as botas, o toiro pequeno e a vaca farejavam-lhe numa delicadeza que me enternecia se conseguisse enternecer-me, ao correr o dedo na sobrancelha o relevo da cicatriz previne-me que eu sou eu e a zaragata regressa, que pretendem de mim as lembranças antigas, vejo um tanque com peixes, uma criança a brincar, a minha irmã Rita saltava à corda e eu sempre invejava-a, não podes mais saltar à corda Rita enquanto eu posso se me apetecer, logo que a febre desça continuo a enganar, o que vende o pó
- Não és capaz de andar direita ao menos?»

ANTÓNIO LOBO ANTUNES, in "Que Cavalos São Aqueles Que Fazem Sombra No Mar?"

Elogio ao amor

Devo dizer que vi este mesmo excerto num blog e não resisti...


«Há coisas que não são para se perceberem. Esta é uma delas. Tenho uma coisa para dizer e não sei como hei-de dizê-la. Muito do que se segue pode ser por isso, incompreensível. A culpa é minha. O que for incompreensível não é mesmo para se perceber. Não é por falta de clareza. Serei muito claro. Eu próprio percebo pouco do que tenho para dizer. Mas tenho de dizê-lo. O que eu quero é fazer o elogio do amor puro.
Parece-me que já ninguém se apaixona de verdade. Já ninguém quer viver um amor impossível. Já ninguém aceita amar sem uma razão. Teixeira de Pascoaes meteu-se num navio para ir atrás de uma rapariga inglesa com quem nunca tinha falado. Estava apaixonado, foi parar a Liverpool. Quando finalmente conseguiu falar com ela, arrependeu-se.
Quem é que hoje é capaz de se apaixonar assim? Hoje em dia as pessoas apaixonam-se por uma questão prática. Porque dá jeito. Porque são colegas e estão mesmo ali ao lado. Porque se dão bem e não se chateiam muito. Porque faz sentido. Porque é mais barato, por causa da casa. Por causa da cama. Por causa das cuecas e das calças e das contas da lavandaria. Hoje em dia as pessoas fazem contratos pré-nupciais, discutem tudo de antemão, fazem planos e à mínima merdinha entram logo em "diálogo". O amor passou a ser passível de ser combinado. Os amantes tornam-se sócios. Reúnem-se, discutem problemas tomam decisões. O amor transformou-se numa variante psico-sócio-bio-ecológica da camaradagem. A paixão que devia ser desmedida é na medida do possível. O amor tornou-se uma questão prática. O resultado é que as pessoas, em vez de se apaixonarem de verdade ficam "praticamente" apaixonadas.
Eu quero fazer o elogio do amor puro, do amor cego, do amor estúpido, do amor doente, do único amor verdadeiro que há, estou farto de conversas, farto de compreensões, farto de conveniências de serviço. Nunca vi namorados tão embrutecidos, tão cobardes e comodistas como os de hoje. Incapazes de um gesto largo, de correr um risco, de um rasgo de ousadia, são uma raça de telefoneiros e capangas e cantina, malta do "tá em, tudo bem", tomadores de bicas, alcançadores de compromissos, bananóides, borra-botas, matadores do romance, romanticidas. Já ninguém se apaixona? Já ninguém aceita a paixão pura, a saudade sem fim a tristeza, o desequilíbrio, o medo, o custo, o amor, a doença que é como um cancro a comer-nos o coração e que nos canta no peito ao mesmo tempo?
O amor é uma coisa a vida é outra. O amor não é para ser uma ajudinha. Não é para ser o alívio, o repouso, o intervalo, a pancadinha nas costas, a pausa que refresca, o pronto-socorro da turtuosa estrada da vida, o nosso "dá lá um jeitinho sentimental". Odeio esta mania contemporânea por sopas e descanso. Odeio os novos casalinhos. Por onde quer que se olhe, já não se vê romance, gritaria, maluquice, facada, abraços, flores. O amor fechou a loja. Foi trespassado ao pessoal da pantufa e da serenidade. Amor é amor. É essa a beleza. É esse o perigo. O nosso amor não é para nos compreender, não é para nos ajudar, não é para nos fazer felizes. Tanto pode como não pode. Tanto faz. É uma questão de azar. O nosso amor não é para nos amar, para nos levar de repente ao céu, a tempo ainda de apanhar um bocadinho de inferno aberto. O amor é uma coisa a vida é outra. A vida às vezes mata o amor. A "vidinha" é uma convivência assassina.
O amor puro não é um meio, não é um fim, não é um princípio, não é um destino. O amor puro é uma condição. Tem tanto a ver com a vida de cada um como o clima. O amor não se percebe. Não é para se perceber. O amor é um estado de quem se sente. O amor é a nossa alma. É a nossa alma a desatar. A desatar a correr atrás do que não sabe, não apanha, não larga, não compreende. O amor é uma verdade. É por isso que a ilusão é necessária. A ilusão é bonita não faz mal. Que se invente e minta e sonhe o que quiser. O amor é uma coisa a vida é outra. A realidade pode matar, o amor é mais bonito que a vida. A vida que se lixe.
Num momento, num olhar, o coração apanha-se para sempre. Ama-se alguém. Por muito longe, por muito difícil, por muito desesperadamente. O coração guarda o que se nos escapa das mãos. E durante o dia e durante a vida, quando não está lá quem se ama, não é ela que nos acompanha - é o nosso amor, o amor que se lhe tem. Não é para perceber. É sinal de amor puro não se perceber, amar e não se ter, querer e não guardar a esperança, doer sem ficar magoado, viver sozinho, triste, mas mais acompanhado de quem vive feliz. Não se pode ceder. Não se pode resistir. A vida é uma coisa e o amor é outra. A vida dura a vida inteira, o amor não. Só um mundo de amor pode durar a vida inteira. E valê-la também.»

MIGUEL ESTEVES CARDOSO in Expresso

sábado, 10 de abril de 2010

"Até logo, avô!"

Enchi-me de uma dose de coragem e li para ti ontem, em frente a todas aquelas pessoas, porque precisava de me despedir. Quando pousei o papel, olhei para todas as caras que me observavam e tentei explicar-lhes este porquê, mas a emoção era tanta que me descompus por momentos e precisei fazer uma pausa para respirar fundo e deixar que principalmente tu, mas também os outros me ouvissem. E coloco estas palavras aqui para ti também, para que de cada vez que alguém as leia, tu te lembres de mim a lê-las para ti e as possas ouvir de novo.
Então comecei:


Olá avô!

Peço desculpa por, antes de mais, ter chegado atrasada. Escrevi para ti e estou a ler para ti, na esperança que me perdoes o atraso. Acho que não sabes, mas sempre gostei de ler - e de escrever - e uma das simples coisas que ambiciono fazer é ler principalmente às crianças que precisam de histórias diferentes das delas e aos adultos, aqueles como tu, com mais vida, porque cedo começam a ver o mundo a preto e branco e um bocadinho de cor nunca fez mal a ninguém. Mas ainda não o fiz, por isso espero que te sintas honrado, se não é demais a palavra, por ser contigo que estou a começar.
Neste momento as minhas palavras não são tão férteis quanto o coração deseja, nem ocupam a linha de forma bela.
Então é isto que se sente quando um avô não resiste. Foste marido, pai, avô, bisavô, amigo. Agora partiste, sem um aviso, e deixaste-nos um sentimento que parte o coração de tão vil crueldade.
Por esta altura já te imagino num lugar melhor, onde não existam sequer degraus que te atrasem o passo, estejas onde estiveres. Oxalá tenhas levado uma bengala contigo, ou andarás ainda longe desse destino desconhecido, quase tão longe quanto estes 87 anos que precisaste de esperar.
Todos conhecemos o sofrimento por que estavas ultimamente a passar e, bem lá no fundo, acreditamos que esta tua partida precoce foi uma vontade que alguém mais superior do que o homem te concedeu. Uma partida precoce, digo-to eu, porque nos parece sempre cedo a hora a que partem todos aqueles que amamos. Mesmo assim, nem eu nem ninguém ficou amargurado com esse teu desejo.
Decerto estás também tu angustiado por veres o quão afectados estamos. Ainda ontem e mesmo hoje falávamos de lembranças, pequenas coisas de que nos íamos lembrando e que te fazem continuar vivo e perto de nós. Até as netas mais pequeninas ficaram sentidas com a tua partida: uma delas está ao meu colo enquanto escrevo e diz que vai ter saudades tuas, ao mesmo tempo que me abraça, não escondendo algumas lágrimas. Para elas tornaste-te uma estrela, a mais brilhante, como ainda hoje me ensinaram.
Lembro-me da última vez que me deste um beijinho, mas tu não te lembras do meu último. Estavas cansado, mal abrias os olhos. Assim, aqui tens mais um. Guarda-o porque ainda quero demorar muito a chegar perto de ti. Sinto-me na obrigação de te dizer que toda a família está ansiosa por te mandar um abraço, pelo que vou servir de mensageira e enviar-to também. Em tom de brincadeira, como estavas em muitas das vezes, dou-te desta vez eu um conselho: aproveita enquanto a tua mulher, a avó, fica por aqui, depois espera-te uma dose eterna de perguntas sobre a tua ausência. Já sabes como é, a Belmira nunca muda!
Despeço-me com duas linhas de um livro que só agora estou a conseguir ler com alma de quem compreende. O livro dá pelo nome de “O Principezinho”:
«Adeus, disse a raposa. Eis o meu segredo. É muito simples: só se vê bem com o coração. O essencial é invisível para os olhos.»
Mas o que não é invisível aos olhos e enternece o coração é o amor que todos quantos estão aqui te têm.

Até logo avô!



Não me lembro de alguma vez ter tremido tanto. Mas consegui ler da forma que queria. Consegui estar calma, metodicamente pausada, a rir e não chorar, mas precisei de me conter muito quando falei do beijinho e olhei para ti e quando ouvi a avó chorar e o pai com as mãos no rosto. De facto, nunca tinha visto o pai assim. Nunca o tinha visto chorar sequer, só nos últimos dois dias.
A prima Caty também leu antes de mim aquelas duas páginas repletas de recordações e lembranças que o primo Nuno esreveu a pensar em ti. Tenho pena que ele não se tenha despedido de ti, ficou tão transtornado por não poder chegar a tempo. Ridícula falta de voos.
Mas foi bonito. Agradou-me ver todas as pessoas que apareceram para te recordar. Agora tenho outro último beijinho que te dei. Foi de facto o último...
Oh avô, vou ter tantas saudades!

sexta-feira, 9 de abril de 2010

«I know you're somewhere out there»

Avô,
um beijo para ti onde quer que estejas.
Se tiver coragem vou pedir para ler para ti amanhã as linhas que comecei a escrever.
Muito amor.



Sabes? Quando estava a regressar ouvi isto por acaso...

«When Heavens turn
You know you'll shine you're in my heart for all time
When Heaven turns you know you'll shine in worlds apart»

sábado, 3 de abril de 2010

De mãos dadas em Lisboa

(Metro em Paris, por Bruno Miguel Silva)

Há uma vida de tresloucos desejos que embebedam a alma até à exaustão! É uma falácia a crença na eternidade do sentimento, já que este muitas vezes existe porque o amante se lembra de o não esquecer. Isso de amar porque se lembra… ai devia ser um acto espontâneo, diferente de arquétipos que estrategas audazes criam para nos fazer embalar neste estado tão perfeito e ao mesmo tempo tão incapacitante!
Acho que vou reeditar o amor, tentar que o aspecto lhe seja alterado, desde a vascularização mais profunda. Não sejamos encorajadores desse sentimento forçado que ornamenta as janelas do peito que se parece encher de paixão.
É autêntico quando nos ataca sem medo, pautado de lugares por ocupar e momentos por viver… Não precisamos de nos lembrar que não podemos esquecer.
Ganha forma quando estou a olhar para o abstracto e tu entras em mim. A tua marca aparece assim, presumivelmente no acaso do tempo, quando nem é preciso estar escancarado um leve traço de ti nas coisas que me lembras. É espontaneamente, nas alturas em que inconscientemente me percorres em arrepios que caminham sobre a pele.
Já estiveste em Lisboa comigo de mãos dadas quando o metro chegou com a sua velocidade a decrescer sabias? Naquele preciso momento em que eu não estou atrás da linha amarela que emoldura a seguridade, quando a estou a pisar e a primeira carruagem, a que dita o caminho, aparece diante de mim com uma velocidade ainda tal que me faz fechar os olhos de repente enquanto o meu cabelo voa para trás e eu sorrio por achar graça ao súbito vento que me traz uma lufada de ar fresco à rotina diária. Não são mais do que dois ou três segundos em que já estiveste mesmo com a tua mão na minha e eu sorria para ti e para mim, de tanta felicidade por apareceres sem eu esperar que voltasses. E ao apareceres no escuro, tornaste-o tão agradável. E num ápice, de olhos fechados, eu queria ficar ali, não no escuro, por mais encantador que pudesse ser. O que eu queria era o momento daquela lufada de ar a ir contra mim e a mudar-me o dia mais uma vez, na expectativa que dessa vez fosse para sempre . Porque é aí o pico, quando a recta deixa a constância e a linearidade e fica acentuadamente apetecível.
Seria com a mesma rapidez de um estalar de dedos que a minha vida mudava. Em amostras de tempo cairia o pano denso e alterar-se-ia o cenário. Ficaria mais leve, mas ia preencher mais o ambiente, decerto.
É delicioso quando estás comigo sem o saberes, como se te capturasse do teu interior e trouxesse para mim a minha parte preferida de ti porque não precisas do resto que lhe inventas. E em tantos desses momentos eu encosto-me a ti, inclino a cabeça na segurança que me dás e tu enrolas o teu braço sobre mim, para teres a certeza que estou contigo e que é real. E passamos assim horas e horas, tu a entrelaçares ocasionalmente os teus dedos nos meus, isso a antecipar e a impedir a altura em que eu te ia despentear, como em tantas outras vezes, depois de estar a olhar para ti com aquela cara de quem se ri sem querer e de olhos bem abertos, tudo por teres estado a brincar comigo. E depois aposto que ia fingir que me estavas a irritar e então ia fechar os olhos depressa e com força para tentar não me rir, mas a verdade é que preferia que me estivesses a dar a mão. Mas então ia acabar por me rir, e para o evitar iria trincar o lábio inferior só para não te dar razão. Mas depois tu aproximavas-te de mim e roubavas-me um beijo. E depois de te afastares da minha cara eu ia abrir os olhos mais devagarinho do que costumo e ia sorrir ao mesmo tempo, para melhor sentir a alegria autêntica de estar contigo.
Não são gestos ou comportamentos desenhados ou programados em tua função. É como eu estou a imaginar essas horas de deleite por te ter ao meu lado. E como antecipo, em viagens que fiz pela minha memória, as minhas e as tuas reacções que sei um bocadinho de cor.

Por culpa da chuva, que começou a cair, fui até à janela para que ela cortasse caminho à água.
Voou sobre mim um cheiro a terra molhada, misturado com o odor da relva acabada de cortar.
São perfumes naturais que aprecio. Aromas tão simples que tão facilmente se ignoram, mas que eu era capaz de exalar sentada na varanda enquanto tomo conta de um bom livro.
Os cheiros. Os cheiros que são o veículo de transporte para recordações que adocicam o coração.

sexta-feira, 2 de abril de 2010

Um longo segredo.

«Parecia-me que já tínhamos vivido um bocado de vida imenso e tão forte que era só nosso e nós mesmos não falávamos disso, mas sentíamo-lo em silêncio: era como se o segredo que guardávamos fosse a própria partilha dessa sensação. E que qualquer frase, qualquer palavra, se arriscaria a quebrar esse sortilégio.»

MIGUEL SOUSA TAVARES, in "No Teu Deserto"

quinta-feira, 1 de abril de 2010

"(...) O que me inveja não são esses jovens, esses fintabolistas, todos cheios de vigor. O que eu invejo, doutor, é quando o jogador cai no chão e se enrola e rebola a exibir bem alto as suas queixas. A dor dele faz parar o mundo. Um mundo cheio de dores verdadeiras pára perante a dor falsa de um futebolista. As minhas mágoas que são tantas e tão verdadeiras e nenhum árbitro manda parar a vida para me atender,reboladinho que estou por dentro, rasteirado que fui pelos outros. Se a vida fosse um relvado, quantos penalties eu já tinha marcado contra o destino? (...)"

MIA COUTO, in "O Fio das Missangas"

"O amor não tem portas que possamos abrir e fechar, nem passagens secretas para um sótão onde possamos fazer férias dele. Toma conta de tudo em nós, envolve-nos como um lençol de tédio, sedoso, infindo. Ninguém fala deste tédio sublime, tão contrário à acção e à eficácia, imóvel inimigo do progresso do mundo. Só no trono do sonho, iluminado e funesto, o amor interessa. Prolongada, a vida torna-se demasiado curta e o amor ganha o ritmo da chuva que bate leve, levemente.
Habituámo-nos a tratar os amores como electrodomésticos: quando se escangalham, vamos ao supermercado comprar um novo, igualzinho ao que o outro era. Consertar? Não compensa: o arranjo sai caro, além de que nunca se sabe muito bem onde procurar a peça que falta. Substituímos a eternidade pela repetição, e o mundo começou a tornar-se monótono como uma lição de solfejo. Tememos a maior das vertigens, que é a da duração. Mas no fim de cada sucesso há um cemitério como o de Julieta e Romeu, apenas com a diferença da aura, que é afinal tudo. As pessoas morrem cada vez mais velhas e cansadas de correr, e os seus cadáveres tensos soçobram de ridículo sobre a terra das suas efémeras conquistas."

INÊS PEDROSA, in "Nas Tuas Mãos"