quarta-feira, 14 de abril de 2010

(fotografia de Rui David)

« Foi num fim-de-tarde de Outono com restos de Verão. O pulôver que, à cautela, saíra de casa comigo, repousava no banco do parque e Joana sacudia os braços nus depois de os mergulhar na água do lago. As folhas secas expulsas das árvores confirmavam o calendário mas a mornidão e quietude do ar, cativando aromas das plantas regadas ao longo das alamedas, desdiziam as tristonhas famas outoniças.
- Anda ver, Pedro! – chamou Joana em alvoroço. Rãs, rãs tão pequeninas e lustrosas que mais parecem imitações de porcelana.
Não fui. Veio ela, saltitante como uma garota em recreio infantil, os cabelos pretos pulando à medida dos pulos, o riso aberto legendando a traquinice. Passou pela minha cabeça a mão molhada, sentou-se e mordiscou-me no lóbulo da orelha.
Nunca eu sentira tão forte o desejo de imobilizar o tempo. Que bom, se tudo permanecesse assim, sempre, sem horas de relógio e dias seguintes empurrando para trás momentos insubstituíveis. Tão vã ambição, conhecera-a ainda criança, quando minha irmã Loreta regressou a casa, meia semana depois da madrugada em que nos fugiu, sem explicação nem adeus, com o trompetista da banda em que o nosso pai soprava saxofone. Na tarde em que a filha voltou, ele não disse nada. Ou disse tudo, num abanar de cabeça que misturava censura e perdão, antes do solo de sax que soou como toque de boas-vindas. Loreta e eu apertámo-nos num abraço chorado e foi nesse fruir do reencontro que, pela primeira vez, eu pedi ao tempo que parasse.
É certo que, nos fervores da juventude, em noitadas de alegria e riso, tornei a ambicionar que não houvesse manhã à espera. Mas só agora, olhando Joana, atingia a plenitude do bem-estar na vontade de tudo continuar assim, definitivamente.
Acercou-se de nós um casal de turistas, de indefinida terra estrangeira mas definidos na condição de turistas, ela e ele de calções, sandálias, camisetas garridas, mochilas e bonés de pala. Queriam saber como chegar ao Chiado, e Joana apontou sugerindo caminhada a pé, a descer o parque e avenida central da cidade, até ao Rossio, praça nobre que deviam conhecer, daí a rua breve subindo a colina. Lá foram, não sem antes nos fotografarem com um telemóvel, admirável facilidade esta de guardar pedacinhos do tempo.
Foi nesse preciso e impensável momento que Joana me fitou com uma expressão grave e disse:
- Pedro, vou deixar-te.
Não entendi, logo, logo, o alcance da declaração.
Ocorreu-me que ia afastar-se por momentos, depois que se apressava para a nossa casa, onde, é verdade, a mãe dela prometera levar-nos uma travessa de arroz doce. Continuei a sorrir.
- E espero-te aqui?
Ela baixou a cabeça, passou os dedos pelos cabelos e, pareceu-me, a voz tremia-lhe um pouco;
- Não me esperes mais. Quero que compreendas Pedro, a nossa relação chegou ao fim.
Poucas vezes a metáfora do soco no estômago terá sido tão apropriada. Senti dor e espanto, sufocação. As palavras bateram-me na mente – “a nossa relação chegou ao fim” – sem apagarem a incredulidade a que me agarrava ainda. Julgava eu termos atingido o ponto mais alto do entendimento e da felicidade e, afinal, a relação como ela lhe chamava, desmoronava-se sem causa nem aviso. Balbuciei:
- O que foi? Que fiz?
Ela sentou-se na calçada, os braços entrelaçando as pernas, depois falou sem me olhar:
- O tédio, Pedro. Não te culpo, talvez, seja defeito meu mas não suporto o tédio, as rotinas, os diálogos repetidos, o nada de novo. É melhor guardarmos, antes que se destrua, a nossa forte amizade.
Amizade? O que eu considerava amor profundo, raro e mútuo alcunhava-o ela agora de amizade. Não percebi se a minha revolta era maior que o desgosto mas havia duas lágrimas insistentes nos meus olhos. Ficámos assim, em silêncio, um tempo longo e amargo. O meu cérebro, porém, atropelava-se à procura de explicações e de uma atitude. Que fazer? Discutir seria penoso, implorar não se coaduna com o meu carácter. Pensei, pensei. Joana parecia-me tranquila, segura, como se acabasse de fazer o que tinha de ser feito.
Quebrei o silêncio:
- Os bons espíritos econtram-se – disse, forçando um sorriso.
- Como?
- Joana, minha querida, tu apenas te antecipaste. Eu ia dizer-te, justamente, que chegou o momento do adeus. Ainda bem que, uma vez mais, estamos em tão perfeito acordo.
Iria jurar que os olhos dela cresceram desenhando uma imagem de assombro. Murmurou:
- Tu ias deixar-me?
- Chegou a hora.
- Mas porquê? Dei-te algum motivo? – O tom de voz era quase choroso e o queixo tremia-lhe.
- Nada, nada. Não sei explicar, Joana, apenas sinto que é a melhor decisão.
Ela ergeu-se e veio, em passos lentos, sentar-se ao meu lado.
- É a Margarida?
Nada se alterou no meu rosto mas ri por dentro. Margarida, uma amiga comum, era a ameaça inventada por Joana. Ciúmes sem sentido desde a noite em que Margarida, meio embriagada, remexeu a mão entre as minhas virilhas.
- A Margarida não tem nada a ver com isto.
Então ela chegou-se mais, passou um braço em torno da cintura:
- Já não gostas de mim? É isso? Diz então, Pedro.
Não disse, seria mentira. Disse ela:
- Tanto amor, Pedro, tantas palavras e no fim...
Encostou a cara no meu pescoço hirto e senti que tremia.
Soltei-me dela com algum esforço e rematei:
- Foi tudo verdadeiro e bom. Agora acabou.
Dei dois passos de retirada mas Joana não deixou. Enganchou-se em mim e repetia, soluçante:
- Não, não, não. Isto não pode estar a acontecer.
Esperei um pouco e ela marcou o rumo:
- Vamos, Pedro. Vamos para a nossa casa.
Assim caminhámos, colados e lentos, ela sussurando juras de amor, eu afagando-lhe a cabeça sobre o meu ombro. E o tempo voltou a parar. »


MÁRIO ZAMBUJAL, "Duelo no Parque"

2 comentários:

Anónimo disse...

não sabia que também tinha gostado deste conto :)

MaryJane disse...

aii eu é que qero tanto conhece-lo, sentir o abraço dele, é um amor!