"Ensaiava os arranjos, queria saber se a canção estava perfeita. Convidava às vezes amigos, poucos, para estas ante-estreias secretas em que surgia com uma ansiedade de pássaro, quase tímido, como se também ele fosse muito novo e tudo pudesse ser muito importante. Tu não estavas lá, mas depois, quando começaste a estar, eu cantava-te essa canção sempre que voltávamos para casa - sempre que tu me deixavas em casa - ao amanhecer. Cruzávamos a cidade à hora em que a luz do sol se mistura com a cinza amarela dos candeeiros.
Respirávamos o ar lavado dessas primeiras horas, um ar molhado que fazia brilhar os carris dos eléctricos e inundava de rosa velho as persianas corridas. Tinhas medo do escuro, tu. Por isso te deitavas de manhã, eu muitas vezes nem isso, tomava um duche e ia à luta. Agora já não posso dormir, velo-te o sono sem saber a quem velar. Adormeces ao som das minhas cantigas, depois do Pascoal o Brel, o Aznavour da Veneza dos amores mortos, canções ligeiras, cançonetas de comover porteiras, dizias tu, cançonetas que sossegam agora o teu interdito coração de porteira e me gritam que já nada posso por ti, por mim, pelas horas todas que nos esquecemos de viver."
INÊS PEDROSA, in "Fazes-me Falta"
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