segunda-feira, 12 de abril de 2010

«Haverá noite para este dia digam-me, uma altura em que deixo de distinguir o salgueiro e depois do salgueiro a janela, os móveis desaparecem porque não acendemos a luz, ficam as pegas de metal a brilhar um momento, um frémito nas portas que ninguém gira, os meus irmãos procurando-se e eu em busca da saída dado que principiaram as dores e não acho o caminho da rua, apercebo-me do alpendre onde a lanterna baloiça na corrente, ao regressar ao baldio via-a na esquina e acalmava, estou a chegar, estou em casa, não me fazem mal já, o quintal fechava-se-me sobre o corpo e escondia-me, nenhuma cólica, nenhum suor, a paz e com a paz a indecisão da madrugada no peitoril
- Nasço não nasço?
a desistir, a pensar melhor e a mostrar um esboço de trepadeiras, que parentes no velório amontoando guarda-chuvas no pote enquanto o meu irmão Francisco modifica os livros das contas, não apenas guarda-chuvas, sobretudos que escorrem turvas lágrimas lentas, se calhar com dinheiro nos bolsos (oxalá que dinheiro nos bolsos) e a Mercília a ver-me procurá-lo indignada, explicar-lhe
- Não quiseram o que estava na tua mala sabias?
e as bengalas mais duras no tapete
- Nunca tiveste nada que prestasse és pobre
a minha irmã Beatriz indignada igualmente
(um automóvel frente às ondas e o marido a compor-se, a certeza de não haver dia para essa noite e lágrimas substituídas por um
- E agora?
sem fim)
uma ocasião roubei os botões de punho ao meu pai e em vez de ralhar-me a expressão dele
- Filha
compreensivo o cretino eu que não preciso de compreensão, quero lá saber que compreenda, preciso de, não preciso seja do que for e não me venham com tratamentos, tratamentos a quê, ando óptima, mesmo que não tivesse família e morasse sozinha, sem a lanterna do alpendre a anunciar de longe
- Estás quase salva Ana
(a propósito de lanterna quanto valerá aquilo, poeirento de besoiros queimados?)
era feliz garanto, emagreci, é normal, aumentaram-me os ossos, se não me apetecer ir ao baldio não vou e acabou-se, a minha mãe para o meu pai que hesitava entre eu e o Casino isto é o que julgava ser droga e o dezassete que a bolinha recusa
- Os botões de punho que te dei?
os olhos do meu pai noutro lado sem deixar de fitá-la para que não pensassem em mim
(não me rala que pensem em mim)
vasculhando mentiras, se tivesse o cavalo a jeito fazia sombra no mar e não se lhe notava a cara, o barulho dos cascos quatro corações desengonçados e cada um
- Filha
não senti um pito quando faleceu, o que devia sentir, almoçava com os empregados feito da massa deles que mal sabiam falar e obedeciam sem revolta, acompanhava-os no baralho de que não se distinguiam os naipes atirando do alto uma manilha, um valete, um camponês chapado, uma espécie de bicho, que esquisito nascer de você, a minha mãe com a senhora das unhas toda gorjeios, risinhos, o meu pai sofria por eu não cumprimentar os colegas, ao mencioná-los não
- Os meus empregados
uma camaradagem que me punha os nervos em tiras
- Os meus colegas filha
não conversava e nas poucas alturas em que lhe escutei uma palavra
- Filha
o meu pai para a minha mãe a fingir admirar-se com a ausência dos botões
- Hei-de ver se os encontro
ou seja comprar uns iguais na vila ou que pelo menos dessem ar dos antigos, desenhou-os nas costas de um envelope
- Losangos de oiro com uma pedra no meio
quando era mais simples ir ao baldio por eles a magoar-se nos arbustos, repare nos meus braços onde não são só as picadas, são os espinhos, os galhos, pode ser que descubra o que vende o pó, negoceie, rebata e Deus queira que os pretos lhe joguem latas em cima, não senti um pito quando faleceu e não sinto um pito agora, talvez o medo de não haver noite para este dia e a minha mãe morta na cama sem gorjeios nem risinhos, torcida e de queixo aberto que eu vi
(nunca me ocorreu que lhe faltassem dentes calcule e sem a pintura tantas rugas, que idade tem você mãe, não disfarce a idade)
a camisa de rendas, dantes justa, a sobrar-lhe no peito, os meus irmãos procurando-se e os colegas do meu pai a trotarem para mim com os corações dos cascos desengonçados, dúzias de corações que me agitam o sangue, o do baldio
- Quanto?
desdenhando a oferta e o homem da gabardina a acordar no degrau puxando-lhe o casaco
- Trabalhei nos guindastes sabia?
a encher o ar de roldanas, a adormecer de novo e as roldanas mudas, apesar do Tejo nenhuma gaivota aqui, escapam-se de nós, evitam-nos, lagartixas, pardais, um cachorro ou dois claro, isto é um país de cachorros, tudo ladra senhores, até eu se a febre sobe, a gemer
(os animais não se suicidam porquê?)
não sinto um pito para além das dores, das cólicas e da alegria depois da seringa, não bem alegria aliás, uma espécie de sossego, o que vende o pó
-Anda cá
e não me importa ir, não o ajudo nem o empurro
(ajudaste o teu marido Beatriz?)
espreito-lhe sobre o ombro as nuvens que se fazem e desfazem exactamente como a vida e a sombra delas, não dos cavalos, em mim,
a minha pele escurece ao passarem e aclara-se intacta
(não vou morrer pois não?)
ao contrário da minha mãe nenhuma ruga por enquanto, a cicatriz na sobrancelha da queda em criança e a Mercília a segurar-me os cotovelos num gabinete com ferramentas num armário, o médico que tresandava a zaragatoa de anginas
(todos os médicos tresandam a zaragatoa de anginas e a borato de sódio)
munido de uma agulha curva no vértice de uma pinça
- Quieta
a consertar-me a ferida, a minha irmã Rita levantava uma ponta do adesivo
- Deixa ver o golpe
num horror fascinado, o meu pai quase
- Filha
a segurar as mãos uma na outra numa angústia que se palpava sem se atrever a espreitar
(livre-se de espreitar)
as mãos cheias de gordura e sangue com que ajudava os toiros pequenos a saírem das vacas, entendia-se que os animais sofriam porque uma das patas não cessava de tremer e as narinas pingavam, o meu irmão João admirado de canguru de borracha suspenso nos dedos, qual o motivo do céu não azul em lugar desta chuva, gotas que se acrescentam às gotas a espessarem o vidro impedindo-me de perceber o meu pai
- Macho ou fêmea?
limpando a cara na manga, interrogo-me se foi assim comigo
- Macho ou fêmea?
limpando a cara na manga, o maioral enquanto tento levantar-me nas perninhas que vergam, não conseguem, conseguem
- Fêmea
e a minha mãe que vai morrer a lamber-me cansada, choverá até quando neste domingo de Páscoa, no baldio, mesmo com chuva
- Anda cá
e eu a espreitar-lhe sobre o ombro os pingos na lona agarrando ervas húmidas, o que pensará a minha mãe nesta altura, aposto que não há espaço nela para pensar e no entanto suponho que gorjeios, risinhos, uma palavra feita pedido de esmola ao telefone
- Porquê?
porque o mundo não se incomoda com a gente senhora nem com a gota que tomba de cada vez que um
- Porquê?
numa parte da minha mãe que nem estou certa que exista, o que sobeja quando não existimos, em que pensarei eu, este livro é o teu testamento António Lobo Antunes, não embelezes, não inventes, o teu último livro, o que amarelece por aí quando não existires, como esta casa é triste às três horas da tarde, toque na fêmea pai em lugar de tocar-me que ela sim, sua filha, não tenho pai, tenho uma colher na despensa com um isqueiro por baixo, um êmbolo, um elástico, um limão espremido e você tinha os cavalos e o dezassete fora da roleta, escolheu um número que não há, uma mulher que não há, filhos que não há, há os toiros mas os toiros são pedras moendo os campos com a boca, não há toiros também, o meu irmão Francisco a rasurar os livros, a soprar o pó da rasura e a escrever por cima, ao passar diante dele não levantou a cabeça, uma sobrancelha apenas, a cabeça no papel e a sobrancelha a mirar-me, o meu pai lavava-se na torneira do estábulo molhando as polainas, as botas, o toiro pequeno e a vaca farejavam-lhe numa delicadeza que me enternecia se conseguisse enternecer-me, ao correr o dedo na sobrancelha o relevo da cicatriz previne-me que eu sou eu e a zaragata regressa, que pretendem de mim as lembranças antigas, vejo um tanque com peixes, uma criança a brincar, a minha irmã Rita saltava à corda e eu sempre invejava-a, não podes mais saltar à corda Rita enquanto eu posso se me apetecer, logo que a febre desça continuo a enganar, o que vende o pó
- Não és capaz de andar direita ao menos?»

ANTÓNIO LOBO ANTUNES, in "Que Cavalos São Aqueles Que Fazem Sombra No Mar?"

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