terça-feira, 31 de maio de 2011

"A Casa Quieta"

"Não te vou procurar. E vim para casa sabendo que pela primeira vez não o faria, interrogando-me como se faz isto, repara a impossibilidade, aprender a fazer como não se faz. É então isto a morte. (...) Não te podendo procurar porque és agora nada, a morte são uns olhos de cão aos pés do teu lugar da cama, a olhar para mim, a olhar para onde te via. (...) A tua morte matou-nos. (...) Levanto-me. Sento-me. Ergo-me. Caminho. Dou a volta. Regresso. Os passos do cão atrás de mim. As unhas dele no soalho. Poderia talvez dizer o teu nome. Se eu fosse poeta acreditaria que isso havia de te ressuscitar. Dizer o teu nome. Pensar no que sempre ouvimos dizer. Que as pessoas não morrem desde que pensemos nelas. Desde que as mantenhamos junto a nós, desde que digamos os seus nomes, o que lhes garantia existirem e serem únicas e não serem mais ninguém. (...) É então isto a morte. Não estares lá e ao mesmo tempo não estares em sítio nenhum, na casa de banho, na sala, a desentortar a torneira do pátio, a regar as plantas, no supermercado, nem sequer na vizinha, não foste visitar a tua prima afastada doente, não estás à espera de um táxi na avenida, não estás Mariana."

- RODRIGO GUEDES DE CARVALHO, in "A Casa Quieta"

segunda-feira, 30 de maio de 2011

Cinzento mortiço

O sono tarda.

Digamos que o corpo se resente do desassossego que está entranhado na pele. O esqueleto dá voltas, encolhe-se miudinho e queda-se como pode, isso quase impossível pela medida da velocidade a que correm os pensamentos. Palavras ecoam, olhares afastam-se numa imagem que já não cabe dentro de quatro paredes. Ou em lado algum.

Quem imaginaria que a imprecisão do preto e branco, se tornasse tão depressa nesse cinzento mortiço? Quanto de nós fica preso nessa transformação? A totalidade?

Isso não me deixa dormir. Nada me deixa dormir.

A chuva cai, a música toca, o vento sopra. A mente chia.


Os passos lá em cima aquecem o chão, mas quem me aquece a mim?

sábado, 28 de maio de 2011

É áspera, é fria, é nada.

Como um reflexo desenhado na janela, a gota avança. Depois insurge-se sobre o forte transparente, toma-o de assalto, segue-lhe a guerra dos passos. Como cola, apodera-se de todos os pedaços da superfície porosa e come-lhe a liberdade, liberdade roubada como carne queimada na carnifiçaria de outras eras.


E tudo vai e muito pouco volta.


Um piano toca lá atrás. O som balança o corpo que quer silêncio puro e duro ou o abraço largo, quente, forte. Desarmado, o corpo cede e vai cedendo, as teclas dando tom agudo à queda. É áspera, é fria, é nada. É vidro estilhaçado. É áspera, é fria, é nada. É a queda livre desgovernada. É áspera, é fria, é nada.

segunda-feira, 23 de maio de 2011

domingo, 8 de maio de 2011

Marioneta imperfeita

A poucas palavras me tenho dedicado. Entre os meus emaranhados de palavras, encontrei este que nunca publiquei. Como falam palavras minhas por aqui...


----


Mandaram-me fechar a persiana como quem manda fechar uma porta. Perdi a luz, murchou-me a alegria da mesma forma que uma flor murcha quando o sol e a água lhe faltam. Na minha vida tenho uma lua, mas falta-me o sol, a sapiência, o tempo. Falta-me o tempo que deixei para trás e esconderam-me o que não fui. Onde está esse eu? Por que portas me fecharam o caminho de volta a mim?
Lembro-me dos caminhos que iam dar à minha alegria. As formas da natureza faziam-me sombra enquanto eu me encontrava mergulhada em abraços que deixei de ter. Os braços embrulhavam-me de tal forma, com tanto amor, com tanto calor…
Ninguém tem a coragem de nos falar sobre a díade do amor. Dizem que a primeira se estabelece entre a mãe e o seu bebé, mas esquecem-se de referir que quando crescemos somos cuidados, amados, acarinhados e que não há intuição que governe uma relação. Essa díade tem uma química nova, outras leis que se apoderam de nós e nos conduzem no universo. O que acontece se a química morre? Passamos a ser controlados pela física, por mandamentos do movimento? Talvez. Reconheço uma mecanização em mim, uma automatização que me ordena as formas de um segundo sentir.
Somos como o universo, tendemos para a desordem. Quanto de mim tem a entalpia em si? Cada bocadinho, conto-vos eu. Toda eu me desorganizei, me perdi.
É reversível? A desordem, o desconcerto? Onde está o meu manual de instruções? Não vim com nenhum engenho? Não há negócios assentes em mercados onde se tratam das nossas cordas? A minha corda tem um nó. Ou então a corda da mão está presa na do coração.
Sou uma marioneta imperfeita, das que as crianças deixam de querer pegar por estarem num emaranhado de cordas.


(Julho 2010)

Similaridades

"Leve, como uma coisa que começasse, a maresia da brisa pairou sobre o Tejo e espalhou-se sujamente pelos princípios da Baixa. Nauseava frescamente, num torpor frio de mar morto. Senti a vida no estômago, e o olfacto tornou-se-me uma coisa por detrás dos olhos. Altas, pousavam em nada nuvens ralas, rolos, num cinzento a desmoronar-se para branco falso. A atmosfera era de uma ameaça de céu cobarde, como a de uma trovoada inaudível, feita de ar somente.
Havia estagnação no próprio voo das gaivotas; pareciam coisas mais leves que o ar, deixadas nele por alguém. Nada abafava. A tarde caía num desassossego nosso; o ar refrescava intermitentemente.
Pobres das esperanças que tenho tido, saídas da vida que tenho tido de ter! São como esta hora e este ar, névoas sem névoa, alinhavos rotos de tormenta falsa. Tenho vontade de gritar, para acabar com a paisagem e a meditação. Mas há maresia no meu propósito, e a baixa-mar em mim deixou descoberto o negrume lodoso que está ali fora e não vejo senão pelo cheiro."


- BERNARDO SOARES, in "Livro do Desassossego"

da «Estética do Artifício»

"Escrevo demorando-me nas palavras, como por montras onde não vejo, e são meios-sentidos, quase-expressões o que me fica, como cores de estofos que não vi o que são, harmonias exibidas compostas de não sei que objectos. Escrevo embalando-me, como uma mãe louca a um filho morto."

- BERNARDO SOARES, in "Livro do Desassossego"