domingo, 26 de maio de 2013

Encontrei dois pratos na mesa adornados com um guardanapo em tons de branco e umas quantas pinceladas a rosa velho e cores que tal. Um copo para ti e outro para mim, supus. Os restantes objectos estavam cuidadosamente alinhados à espera de serem usados. Curiosamente, não sentia perfume algum que indiciasse o que preparavas. Típico, lembrei-me segundos mais tarde. As tuas mãos não criam presentes perfeitos na cozinha.
O som da água a cair
não te apercebeste da minha chegada. Se bem te conheço, vais demorar-te no quarto enquanto a água tende a aquecer. Sempre fizeste isso. Às duas por três perdes-te no tempo envolvido na dúvida da camisa branca ou das calças mais escuras quando as mais claras ficariam lindamente dizia-te eu. Outros são os dias em que me fazes chegar atrasada porque o par da meia não é aquele que devia ser e tu sem o par correcto não és capaz de sair mesmo que as cores se desviem quase imperceptivelmente. E eu repito mais uma vez que um dia vou substituir tudo o que existe nessa gaveta por meias de menina porque entre o cor de rosa e o amarelo dificilmente te havias de perder.
Descalço um sapato de cada vez quase caindo na minha pressa. Pé ante pé subo as escadas para te encontrar. Quem vai fazer a surpresa sou eu afinal. Espreito
estás de costas para a porta aberta, já sem camisola. Em cima da cama três camisas e em ti um nervosismo clássico. Clássico e raro direi.
Entro?
Fico encostada à porta à espera que me olhes. Quero ver a tua expressão quando me encontrares a seguir de perto o teu plano. Vi-te pegares nas tuas hipóteses e posso jurar que desviaste a cabeça à direita com a sensação de que estarias a ser observado. Desististe de procurar essa presença claro. Quem para além de ti poderia estar ali no nosso quarto naquele momento? Tinhas a casa e o tempo sob o teu controle confiavas tu. E o teu ouvido perfeito que parece obra de cego teria desocultado a minha presença no momento em que rodei a chave do lado de fora da nossa porta de entrada. Só uma escolha e 2 minutos depois te deparaste com a minha figura. Deste um passo atrás e abriste ligeiramente a boca, um quase completo desiludido e eu que tinha os braços cruzados sorri para ti e abanei a cabeça. Desapertei o casaco e murmurei apenas que iria desligar a água. Calei-te a ti e
acordei. Procurei a almofada ocupada mas o único peso que a cama sentia era o meu. Retraí-me para pensar se devia procurar-te ou se deveria deixar-te beber o copo de água que manhã sim manhã não deixas pousado junto à janela da cozinha. 30 segundos, 2 minutos, 7 minutos nunca demoras tanto, onde estás? A água está sempre fresca pronta para que a vás deitar. Ainda há quatro copos no armário, só dois estão a lavar e não caíste eu notaria. A luz da casa de banho está apagada.
Não consegues dormir?
Tens o computador desligado não ouço a televisão não sei de ti. Deixo para lá o cobertor e sento-me na cama a olhar a persiana que ficou por fechar. Um arrepio
subiu-me um arrepio que me gelou o corpo e eu não soube interpretar essa sensação. Calço-me um chinelo no tapete o outro debaixo da cama quero lá saber
preciso de ti aqui porque tenho um arrepio que não me larga. Saio descalça e acendo a luz que ilumina as escadas. Sim
o bengaleiro perdeu o teu casaco já lá vão dois meses esqueci-me. As tuas chaves estão fora de sítio não estão em lado nenhum e perdi a noção disso. Desço os degraus com a mão esquerda no corrimão e engulo em seco quantas vezes não sei. Sento-me ao fundo sozinha comigo.
Detive-me a olhar a moldura que me ofereceste no dia em que nos mudámos para a nossa casa. Levantei-me e toquei-te no vidro polido que ao toque senti áspero como cornos de outra forma não poderia fazê-lo. Peguei-lhe e tirei a fotografia que levei até à cozinha onde o teu copo espera por ti. Enchi o copo com água acendi um cigarro fumei-o sentada na bancada com as pernas esticadas e os pés assentes na nossa fotografia. Adormeci ali e quando acordei ainda era noite. Levantei-me passei o copo por água e misturei-o no meio dos congéneres porque não quero mais saber. Um copo é um copo e a fotografia era uma fotografia que acabou arrumada na caixa que guardávamos no quarto com roupa que íamos doar no dia em que achássemos que teríamos tempo. Passo pela moldura vazia antes de me deitar e
todos os dias aquilo não é nada já não há nada nem nunca chegará a realmente ser o que quer que seja (fosse).