quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

na primeira pessoa

Consegues recordar aqueles momentos que fotografas na memória? Por exemplo quando o comboio chega naquele fim de tarde que para ti significa mais uma mansarda de dia e a música certa está a tocar no teu bolso. O vento sopra-te a vida e madeixas aleatórias de cabelo, mas só a ti. Para te acordar de um pesadelo em que adormeceste há dias e de onde ainda hoje não acordaste. E nesse exacto frame olhas para um lado e para o outro tal e qual como se quisesses atravessar uma passadeira na Avenida da Liberdade. E o comboio que não aparece. Tu a quereres atravessar aquele dia, e ele a ficar preso neste minuto e no seguinte, fazendo-te repensar desejos e medos. Sentes-te observada por umas três pessoas, sabes como é? Sim, sentires-te nua aos olhos daqueles três corpos que nunca viste e que partilham uma compreensão que não sabes medir. Secalhar até nem é nenhuma. Mas lêem-te com o mesmo olhar que lanças à mala que preferias deixar para trás.

Pequenina, escondes-te atrás da linha amarela que as normas de segurança decidiram que não deves ultrapassar. Escondes-te em ti, foges por entre os cabelos que o vento insiste em empurrar-te para os olhos. Não sabe ao mesmo que ter a areia a invadir-te a pele, cortante pela velocidade, mas esconde uma réstia de tortura contextual que não sei explicar.

Anyway...

Sabes que não pára por aqui. Que há por aí alguma coisa que tens que descobrir com a mesma surpresa que te fica estampada no rosto naqueles dias em que és presenteada só porque sim, porque a razão não preenche a totalidade das coisas. A surpresa pode até surgir daquilo que já conheces. Como eu dizia, não há nada que pare por aqui.

terça-feira, 31 de janeiro de 2012

Vincos

Quando passei para o lado de lá da estrada já levava comigo a sensação de uma menina que, ao contrário dos pares, saltava com um pé e o outro para tocar somente as riscas pretas da passadeira. Correr pelo branco é para quem carrega a despreocupação dos dias leves que cedo acabam para deixar chegar o seguinte.
Ao olhar esses sinais que o tempo, lembro-me, não tinha esculpido nos vincos que a tua pele agora exibe, apercebi-me de que já sabia o que ao corpo teimava em fazer escapar. Vincos como esses que hoje observo são de quem tem decididas as linhas do que jamais será, pensamentos que bruscamente penetraram onde o nosso incêndio começou por esmorecer.
Depois da passadeira, e olhos no chão que o futuro já partiu sem eu saber, ainda me seguras a mão. Que eu não sou de quem nunca me fez vaguear à margem do rio em contra-corrente... Tal qual tu e eu. Nessa única mão em que uma história se entrelaça resido eu e os dias em que esperei que essa mesma mão tocasse as minhas costas quando repousava o corpo sobre a areia de uma praia da marginal, onde perdi conta aos quilómetros e às tardes em que o cabelo corou ao sol. Pessoas passavam e outros corpos como eu ali sentados escorriam os males do dia.
Já na praça aberta que convida o rio a entrar, os mesmo males foram pesados por ti num prato de uma balança certamente diferente da minha.  Efeitos da água doce, para o caso de querer desculpar alguém.
Entretanto envolta na preferência de observar as histórias dos outros do que tornar real o fim da nossa, ouvi-te um início de uma série de palavras que me iriam trazer a ti.
- Sim.
É tudo quanto posso dizer quando a simbiose se consegue com as cores de céu em fim de dia. Está tudo de acordo contigo, só falto eu.
- Não demorará muito, já conhecemos o caminho.
E depois da minha voz levaste as duas mãos aos bolsos, pois já andavam por aí à pendura sem sabrer onde se meter. Nesse movimento o alívio e ao mesmo tempo a disfarçada desilusão de quem tentou reconstruir a história e nesse caminho se perdeu.
-  Por ali? Vamos embora que o relógio parou para nós.

Encostados a imagens que haveríamos de deixar para trás, caminhámos lado a lado até à última rua que eu iria tocar por ali. Quem sabe um dia começa o relógio a sentir andar a corda num princípio que Newton chamava da ação e reação.

domingo, 29 de janeiro de 2012

«sem restos de prudência»

"De manhã cedo o carro segue em direcção a Lisboa na companhia do mar. O Sol baixo encandeia, e por instantes fecho os olhos e deixo-me levar pela tua imagem, embalado na doce memória do teu corpo. Sou marinheiro em caravela e o oceano a meu lado. A maré sobe e enche-me de ti, dos teus olhos que se fecham em silêncio no momento em que me amas. Não há mais espaço, querida. O meu peito é um casco onde nada mais cabe. Só o coração no porão, lastro que guarda um continente de perfumes exóticos e especiarias, cores e matizes que os homens desde há muito buscam. Por dentro vou repetindo, saboreando as palavras com lentidão gulosa: «Navego à bolina do teu vento». De repente não sou mais barco, mas o balão silencioso que nos transportou pelas planuras de África, numa manhã semelhante, feita de ocres e palha, e manadas de antílopes de corpo redondo como o das mulheres, galopando debaixo de nós. O mundo virou ao contrário, e o mar é agora céu da mesma cor. E o vento que nos impele com o mesmo cuidado de mão de mãe. Navego à bolina do teu vento, e amo-te de forma imbecil, sem restos de prudência (...)"

- NUNO LOBO ANTUNES, in "Vida Em Mim" (pp. 57)

segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

Timeline

Naquela noite, debaixo da chuva, duas silhuetas esconderam-se sob uma varanda. A novidade era-o pela segunda vez, mas das gotas molhadas já se sabia de cor a sensação. No canto de uma praça para boémios, duas mãos procuraram o conforto que evitavam precisar. Num olhar, um procurou o outro e a segurança tremeu. Abalaram-se convicções que se começavam a perder de vista e horas depois, oito, da noite para o dia, na mesma praça, já não eram duas as mãos que não se deixavam.

Na tarde que se seguiu, com olheiras e entusiasmo mal disfarçados, um despediu-se do outro com a promessa de ali voltar (definitivamente). E nesse momento eram os minutos que não paravam de avançar, o relógio por avariar. A tarde insistia em voar em direcção à noite, mas nunca acelerando o reencontro que já demorava. Olhos nos olhos, força no corpo para não parecer frágil, ela tentou disfarçar entre finas madeixas de cabelo o medo de não regressarem. Deixou-se abraçar por ele para tentar que a ausência deixasse que lhe ocupassem o lugar e depois, querendo reter aqueles segundos por dias, deixou os pés em bico para o entrelaçar nos seus braços menos longos. Com a dificuldade que horas antes não adivinhava, viu-o então partir. Esquecendo os sussurros de quem anda numa roda viva para voltar a casa e começar o jantar, seguiu-lhe o movimento de quem descia as escadas quando na verdade só as quer voltar a subir. Só quando se viu forçada a partir abandonou o palco daquele dia.

Meses depois, ela lança à praça o destino de um dia. Que ali perto dois mundos se desencontraram para pouco mais voltar a encontrar. Quarteirões acima, ou abaixo se o dia tiver sido mau, perdeu-se o trajecto. Um dos lugares vai vazio e a porta trancada para não deixar entrar. É que ela abre por dentro, se se justificar, mas do lado de fora não existem passes de livre trânsito para entrar.

Mesmo assim, tomou-lhe o (des)gosto e correu para um chão que já pouco lhe diz. As mãos iam trémulas a denunciar que a viagem devia ficar por ali. Mas não ficou. Atrás de uma parede, encolhida no carro que resistia na rua, deixou passar os momentos que quis numa timeline que ainda não aprendeu a guardar, observando janelas despidas que já não ia encontrar. Por fim, quando o corpo mostrava sinais de começar a dobrar as fronteiras da resistência, ela desvia o olhar para o habitáculo, deixa cair os braços sobre o colo, perde uns segundos e sabe que é tempo de partir.

terça-feira, 3 de janeiro de 2012

Em perturbações do desenvolvimento? «Nivelar a corrida»

"Mais do que médico, caro amigo, sou relojoeiro. A sério, tento afinar o relógio da existência, acertar horas e minutos para que cada etapa seja vivida sem soluços inúteis ou evitáveis. (...) Eu sou uma espécie de oficial de partidas, e o meu objectivo é nivelar a corrida, pôr todos os meninos em condições de igualdade e cronometrar-lhes os tempos. Às vezes sinto-me chefe dos escuteiros, homem grande de calções, levando os meus meninos por trilhos por onde passei. A angústia, caro amigo, é saber que sou um homem maduro que brinca à cabra-cega, porque muitas das crianças que acompanho andam aos apalpões, de olhos vendados sem o saberem. Sabe como é andar na estrada e pelo espelho retrovisor ver os outros que nos perseguem? A sensação que tenho em relação às crianças que acompanho é semelhante. Já fiz o percurso, conheço as armadilhas e só quero que me acreditem. (...)
Como talvez saiba, hoje em dia dedico-me sobretudo a crianças de futuro ameaçado. Não que a sua vida esteja em perigo, nada disso, mas porque correm o risco de «falhar». A noção de falhanço não é tanto vista como problema actual, mas como projecção no futuro, antevisão da sua qualidade de vida, incapacidade para criar e aproveitar oportunidades, em suma, de ser «alguém». No fundo, os pais querem cuidar do futuro dos filhos, criar condições de realização profissional e pessoal quando eles próprios já não tiveram forma de intervir. Exercer influência à distância, prevenir, dar instrumentos. (...) Já escrevi que a maior parte dos pais faz o melhor que pode e sabe, num quotidiano de problemas sem solução segura. Quem me procura vive na angústia de ver os filhos cortar amarras demasiado cedo, e serem arrastados por correntes que não dominam, para destinos que não controlam."

- NUNO LOBO ANTUNES, in "Vida em Mim"

«O tecto protege ou limita?»

"A mãe argumentava, o pai desistia, e eu pasmava. Perante um adolescente, a primeira preocupação do médico é criar pontes, numa espécie de operação de engenharia militar que perante enxurradas que alargaram os leitos, arrastando consigo gentes e pedras, para que se possa aceder à outra margem, colocam por medida barras de metal, ainda que transitórias, mas por onde, um a um, homens gritam que já não estão sós. Temos a noção de que algures no tempo essas pontes agora caídas e intransitáveis permitiam contactos, permeavam influências, ditavam comportamentos. Às vezes não consigo, desisto, e enquanto me despeço e fecho a porta do gabinete, largo a mão, fixo o horizonte, e deixo que a corrente os leve. O próximo...
É buscando a minha própria humanidade que procuro decifrar os outros. Às minhas misérias vou buscar a tolerância que gostaria que tivessem comigo. Nos meus erros não encontro consolo, apenas a antecipação da mortalidade. Exijo muito, cumpro pouco. Smpre me fascinou o dilema que se coloca ao saltador em altura. Bateu o recorde, ganhou o campeonato. Pode ficar por aí, colher os aplausos, baixar o pescoço e recolher a medalha. Chorar durante o hino. A alternativa é pedir para subirem a fasquia só mais um centímetro, derrubar a barra e reconhecer o seu limite. Nessa circunstância, a que soarão os aplausos? Será que por dentro se apupa por não ter voado mais alto? O tecto protege ou limita? A competição desenrola-se dentro de nós. Somos o palco e o competidor, juiz e espectador, e, no fim, perdemos sempre."

- NUNO LOBO ANTUNES, in "Vida em Mim"