domingo, 5 de dezembro de 2010

Conta-Corrente

Obrigada Virgílio. De repente, já não me sinto tão estranha por equacionar tudo o que existe à nossa volta!

"Não, não é bem o vazio: é a mineralização do mais dúctil e fugidio em nós. É a incapacidade de olhar uma flor ou o espaço azul e comover-me. Todo o mundo vibra de uma forma intensa de milagre e é difícil centrarmo-nos onde o milagre acontece. Uma flor. A vida intrínseca e vertiginosa do que nela se realiza na sua cor original, na sua forma incrível, no perfume com que respira. Então, quando o vejo, comovo-me até às lágrimas. Mas é preciso desbastar uma camada grossa de urgências, de hábitos mecânicos, de naturalidade. E a vida não é natural. Nós habituamo-nos a tudo, como se tudo tivesse evidentemente de ser assim. Um homem junta-se a uma mulher e nasce um filho. Há centenas de milhares de anos que isto acontece. E nunca ninguém se mostrou intrigado. Intrigam-se é com as heranças e as infidelidades e coisas assim. Não com o facto fantástico de nascer uma criança. De longe em longe lá aparece um tipo a mostrar-se espantado por haver gente e bichos e estrelas. O menos que se lhe chama é reaccionário e tarado. A ordem da vida é a normalidade. Tudo o que for além disso é que é estranho. Mas o que vai além disso é uma ridicularia. O fantástico está antes."

- VIRGÍLIO FERREIRA, "Conta-Corrente II" (1977-1979)

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