domingo, 4 de dezembro de 2011

Contabilidade da emoção

"Brincávamos a cair nos braços um do outro, como faziam as actrizes nos filmes com o Marlon ... Brando, e depois suspirávamos e ríamos sem saber que habituávamos o coração à dor. Queríamos o amor um pelo outro sem hesitações, como se a desgraça nos servisse bem e, a ver filmes, achávamos que o peito era todo em movimento e não sabíamos que a vida podia parar um dia. Eu ainda te disse que me doíam os braços e que, mesmo sendo o rapaz, o cansaço chegava e instalava-se no meu poço de medo. Tu rias e caías uma e outra vez à espera de acreditares apenas no que fosse mais imediato, quando os filmes acabavam, quando percebíamos que o mundo era feito de distância e tanto tempo vazio, tu ficavas muito feminina e abandonada e eu sofria mais ainda com isso. Estavas tão diferente de mim como se já tivesses partido e eu fosse apenas um local esquecido sem significado maior no teu caminho. Tu dizias que se morrêssemos juntos entraríamos juntos no paraíso e querias culpar-me por ser triste de outro modo, um modo mais perene, lento, covarde. Eu amava-te e julgava bem que amar era afeiçoar o corpo ao perigo. Caía eu nos teus braços, fazias um bigode no teu rosto como se fosses o Marlon Brando. Eu, que te descobria como se descobrem fantasias no inferno, não queria ser beijado pelo Marlon Brando e entrava numa combustão modesta que, às batidas do meu coração, iluminava o meu rosto como lâmpada falhando a minha mãe dizia-me, Valter tem cuidado, não brinques assim, vais partir uma perna, vais partir a cabeça, vais partir o coração. E estava certa, foi tudo verdade."
- VALTER HUGO MÃE, in "Contabilidade"

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