quarta-feira, 5 de outubro de 2011

«Alvo»

"Por uma vez conta como o corpo se ajusta à superfície das tuas palavras. Fala de um depois anterior, desse sono demente na fissura da luz; do violento voo ou ferida cíclica, a ausência excedendo-se na pele quando a desoras perfumas minhas mãos. Estende-se o calor aos lábios, o verão simula a duração no verso, circula a água, vigorosa, no fundo do poço até desaparecer na cama muda.
Nada é o que parece, lembra-se o que se esquece e eu digo os dedos descalços dissolvem em tua boca o mel à flor dos destroços. Olha-me: deita o olhar em meu vestido, tira-o num gesto ébrio e precipitado como a um prisioneiro, os peixes sobem lestos no lago imoderado e a noite volta, lenta, adormecida. Dou-te o que não tenho – a história de um rio exultante a explodir na boca em versão romântica, poema sem trágicos sulcos ou fala completa. E tu, tu dás-me o que sou: metáfora doendo-se alto onde acaba o texto."
- ANA MARQUES GASTÃO, in "Nós/Nudos"

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