sexta-feira, 23 de julho de 2010

Eu chamo-lhe vida

A primeira vez que entrei numa discussão sobre o aborto tinha uma posição bem definida, um vinco muito bem passado. Nunca a abandonei por completo porque não tenho o início da concepção da vida no momento em que o coração bate, mas antes, muito antes. (Ás vezes até o meu coração deixa de bater e eu continuo com vida.) Outra parte leva-me sempre a pensar no corpo e na percepção de uma mãe que não se sente mãe e que se prende precisamente com o que hoje li. Apesar de não conhecer todas as mulheres do mundo, acredito piamente que praticamente todas as que deixam a criança por nascer perdem com ela uma parte de si. Afinal, todos sentimos falta de algo na vida que nunca chegou a ser, mesmo que a coisa mais banal dos nossos dias. Imagine-se então o que é perder um pedaço de nós que nunca se deixou florir, navegando por vezes sobre o engano de que não se sente falta do que não se conhece.
Por outro lado, existe sempre aquele número que não foi feito para agradar às maiorias e ao qual a sociedade muitas vezes se esquece de olhar. As pessoas são pessoas, não são números. E ainda que um aborto seja um dano para a maior parte das vidas, há sempre aquelas, menos, que viram naquela a solução que lhes salvou a vida. Para essa minoria feminina, reconheço o direito de outra escolha, uma opção diferente da que me vejo escolher, porque os ideais de vida são feitos para quem a eles se ajusta. Mas... e aquele ser minúsculo? Aquele aglomerado de células, de pele, de vida? Nega-se-lhe uma escolha por ter o azar de não ser permitido que a idade o deixe manifestar-se? Tanta ética e tão pouca humanidade. Tanto egoísmo de ambos os lados.
Sinceramente, nem sei porque escrevo isto, não tenho por hábito escrever-vos sobre o que não é o meu amor. Mas este também pode considerar-se amor, um diferente, porque não tenho crianças, ainda tenho muito para aprender até chegar essa fase. Mas sabem que mais? Na faculdade tenho aprendido imenso sobre crianças, e muito mesmo sobre as que são diferentes. Tenho aprendido outros olhares de vida e a ver tanto das crianças em muito de mim. De todos nós, aliás! E a cada vez que observo uma criança, mesmo tendo noção das batalhas que a levaram até ali, penso em como será deixar que um daqueles projectos de vida se perca na escolha de um pai ou de uma mãe, de como será que se encontra coragem para não querer uma coisa tão pura como um daqueles seres. Como se rejeita uma parte de nós como esta? E bem sei que há casos em que a criança poderá padecer de males que não merece, e ai de nós vê-la sofrer! Mas também reconheço que não se consegue dar carinho a uma coisa que não se ama. E aí, de que valerá tê-la?
Não sei, sou um bebé e não sei nada da vida. Entendo não poder arbitrar vidas alheias, muito menos se não lhes conhecer as histórias. Mas ainda assim, dói-me. Um dia destes resolvo-me acerca desta dúvida que tenho.
No livro que presentemente me encontro a ler, surgiu num ramo da história esta mesma questão que me levou a apetecer escrever-vos. Em parte, aborda o que referi. Aqui vo-la deixo:

"A minha bebé teria hoje dois anos, seis meses e quatro dias de idade - disse ela. - Ela tinha um problema, um problema genético. Se tivesse sobrevivido seria deficiente mental profunda. Como um bebé de seis meses, para sempre - respirou fundo. - Foi a minha mãe que me convenceu. Disse-me: "Annie, mal consegues tomar conta de ti própria. Como vais tomar conta de um bebé assim? És jovem. Vais ter outro.
" Por isso cedi e o médico fez o aborto às vinte e duas semanas - Annie desviou o rosto, de olhos brilhantes. - Mas o que ninguém nos diz - continuou ela - é que quando damos à luz um feto, recebemos uma certidão de óbito, mas não recebemos uma certidão de nascimento. E depois surge o leite e não podemos fazer nada para impedi-lo - olhou para mim. - Não é possível ganhar. Ou temos o bebé e envergamos o nosso sofrimento exteriormente, ou não temos o bebé e mantemo-lo dentro de nós para sempre. Sei que o que fiz não foi errado. Mas também não me parece que tenha sido certo.
Apercebi-me que há legiões de mulheres como nós. As mães de bebés dilacerados, que passam o resto da vida a pensar se não deviam tê-los poupado. E as mães que abdicaram dos seus bebés que olham para os nossos filhos e vêem os rostos daqueles que nunca chegaram a conhecer.
- Eles deixaram-me escolher - disse Annie - e, mesmo hoje, quem me dera que não o tivessem feito."

JODI PICOULT
, in "Frágil"

2 comentários:

Marley disse...

Adorei, tens geito para a escrita (:

Marley disse...

Obrigada, e eu ao teu (: