quinta-feira, 8 de julho de 2010

Do nosso encontro no desbravar da noite.

Tenho uma dor na garganta. Estou a engolir tudo, estou a secar as fontes de lubrificação lacrimal para impedir um episódio que há muito não permito. Seco a pele a cada momento que as fontes tremem.
Já perdi a conta aos tons de azul que apontei no céu. Por esta hora o verde começa a batalhar por aparecer lá em baixo, estou a espreitá-lo desde há pouco! Na cidade onde aprendi a passar a maior parte dos meus dias tenho o mar, o rio, a vista deliciosa sobre o Tejo quando acordo. Aqui tenho uma janela grande que dá para a lua e as estrelas. Amo a noite, estou apaixonada! Tornar-me-ia noctívaga se ela prometesse ser minha guardadora de sonhos. De certa forma já conquistou o posto, é às confidentes que se reconhece tal qualidade. Quantas vezes não cantei para a lua em ensaios de letras para ninguém? Trauteei igualmente diálogos de películas que filmo na cabeça com o modelo mais grandioso de imaginação e às duas por três lá me descuido(continuo a descuidar) e perco a postura porque a pérola da noite cora com as minhas palavras e então floresce em lua cheia.
Ainda hoje a lua me ouve, sempre muda. É melhor ouvinte do que companhia para conversas. É impressionante, nunca deu sinais de querer segredar-me uma paixão que fosse! Divagando sobre os contornos da sua atitude encontro nela a vontade de quem me quer ver crescer, a alargar perspectivas, tonificar possibilidades, a alimentar verdades. A maravilha segue-me do alto, atenta, e conhece de cor os trajes deste corpo que irá dormir, descombinados com o ar de quem está a (re)nascer.
O preço deste prazer de me sentar encostada ao seu silêncio com o caderno nas pernas e a alma nos braços é incalculável. Tenho pena de não conhecer palavras que lhe façam justiça. É um luxo. Mais, uma necessidade. Uma hipótese de ar quando deixo de saber respirar. É a perfeição antes dos corações se deitarem, quando as horas tardam, depois de frases descalças terem apanhado a sola.
Como ainda estou desperta! Nada me adormece e o cérebro não descansa, tão irrigado que está de horas vividas e por saborear.
Como te disse à pouco, digo-lhe que parece ter sido à cinco minutos e não ao tempo que foi. Em segundos transporto-me para as mesmas folhas que tinha a cobrir a mesa, o calor insuportável e a mensagem que tinha em mãos. Estou a observar-me. (E a ti.) Estou no canto da sala, à entrada, a ver-me de costas. Descaída, aposto que apática, imóvel. Incrédula. As mãos tremiam. A capacidade de conduzir o corpo pela vontade sumiu-se. O olhos passaram pelas palavras uma, duas, várias vezes, vezes demais e contudo insuficientes para assimilar a sensatez daquele pedaço de ódio. A alma ia ardendo, desfazia-se lenta e dolorosamente, enquanto o corpo ia perdendo sentidos. (Tu estás assoberbado na tua dor própria, abafado num ninho de raiva, no teu plano mal concebido. Estás louco. Estás certo, concluí uma vez para sempre desacompanhada.)
Como que a acordar de um sono perturbado, acordei eu e o corpo e a mente, os três sobressaltados. Coordenados numa revolta sem precedentes armámos uma guerra cruel, assente em princípios de respeito e leis da perenidade.
A ti dei-te a resposta esta noite. Essa e mais umas mil, reconto. E enquanto pensas cautelosamente as tuas respostas, eu admiro as estrelas. Estão encantadoras hoje! Sei que medes as palavras, agora sim. Tens a medida certa, um instrumento de mensuração que compraste com o tempo. Raramente te descuidas, mas muitas vezes adivinho quando te vais envolver em perguntas descontroladas. Não há mistério, não se despeja aqui ciência e muito menos se respira metafísica! Só vejo o que conheço.
“- Sabes que podes dizer o que quiseres”
Não te peço mais. Aliás, nunca mais to voltei a pedir.
Agora que me desliguei saí da janela e sentei-me sobre os lençóis, perdida de vista pelas estrelas. Não largo o mundo lá fora, aquele pedaço de rotina natural, belíssima, que nunca cessa. A janela continua aberta. Estou à espera que o espreitar do sol me entre pelo quarto adentro.
Não te desperdiço com palavras. As senhoras palavras, mesmo que mascaradas de sentido e mal pregadas na linha, são a minha arte. És quase como a noite sem que sejas tanto. Vês-me com o olhar dela, conheces-me desde a ponta do dedo do pé até ao pensamento que melhor se atraca à margem dos demais mortais. Sabes a resposta a todas as perguntas que me fazes, não sabes? Escondes que sim.
Estamos a alongar-nos, é quase de dia e não é esta a nossa hora. O nosso novo nós, esse sim é noctívago. Existimos na minha noite. Passaram a ser sempre à luz do escuro as nossas horas mais claras. Oh, já se faz tarde! Aqui deitada perdi a lua, desencontrou-se do meu ângulo. Quererá dizer que está realmente na nossa hora, que o dia chega para nos dividirmos em quase desconhecidos (e com outros desconhecidos).
Espera. Estou a pensar no balão. Talvez não fosse má ideia se lhe déssemos asas. Acaso o tivéssemos libertado agora, a altura teria sido boa porque corre lá fora uma brisa que arrefece o calor. O nosso balão podia voar em paz e em segredo, a esta hora ninguém quer saber de coisas perdidas.
Esse ar fresco acabou de me abraçar! Aceito o convite de boa vontade, largo a caneta e descanso o corpo sobre o leve tecido branco. Ai como sabe bem este choque do inevitável com o improvável. O corpo ressente-se, desabituado que está a estas surpresas.
Já ouço o cantar dos pássaros e as árvores a abrir as folhas. Está tudo a levantar-se lá fora e o céu começa a perder a cor. Perdemos as horas!
Vou fechar a porta à noite. Fechemos os olhos. À claridade completa do dia será hora de esquecer.

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