sexta-feira, 23 de julho de 2010

O recomeço num beijo

"- Então - disse ele, e senti os braços dele a envolverem-me. A respiração era quente no cimo da minha cabeça. - O que foi?
Inclinei o rosto para o dele. Queria contar-lhe tudo - o que me disseste, como estava tão cansada, como me sentia vacilar - mas em vez disso ficámos a olhar um para o outro, a telegrafar mensagens que nenhum de nós tinha coragem de dizer em voz alta. E então, devagar, para que ambos soubéssemos o erro que estávamos a cometer, beijámo-nos.
Não me lembrava da última vez que tinha beijado Sean, pelo menos assim, sem ser aquele beijo superficial de despedida por cima do lava-loiça. Era profundo, rude e devorador, como se ambos devêssemos ficar em cinzas quando acabasse. A barba dele deixou-me o queixo em carne viva, os dentes morderam, a respiração dele encheu-me os pulmões. A sala cintilava ao canto do olho e afastei-me para poder respirar.
- O que estamos a fazer? - arquejei.
Sean escondeu o rosto na minha garganta.
- Que interessa, desde que continuemos a fazê-lo.
Então as mãos dele deslizaram-me debaixo da camisola, marcando-me; tinha as costas encostadas à porta de metal e vidro da máquina de secar roupa quando Sean me empurrou contra ela. Ouvi o tilintar da fivela do cinto dele a cair no chão e só depois percebi que tinha sido eu a atirá-la para o lado. Enrolando-me à volta dele, tornei-me numa trepadeira, luxuriante, entrelaçada. Atirei a cabeça para trás e desabrochei.
Terminou tão depressa quanto tinha começado e, de repente, éramos o que fôramos quando começámos: duas pessoas de meia-idade demasiadamente sós para se tornarem desesperadas. As calças de ganga de Sean estavam enroladas nos tornozelos; as mãos dele agarravam-me nas coxas. A pega da máquina de secar roupa estava a magoar-me as costas. Deixei uma perna cair no chão e enrolei um lençol dele em volta da cintura.
Ele estava a corar, um rubor profundo e desgarrado.
- Desculpa.
- Estás arrependido? - ouvi-me dizer.
- Talvez não - admitiu.
Tentei afastar os cabelos emaranhados do rosto penteando-os com os dedos.
- Então e agora o que fazemos?
- Bem - disse Sean. - Não podemos voltar atrás.
- Não.
- E tens o meu lençol de cima em volta do teu... tu sabes.
Olhei para baixo.
- E o sofá é mesmo muito desconfortável - acrescentou.
- Sean - disse eu, sorrindo. - Vem para a cama.

Pensei que no dia do julgamento ia acordar com um nó no estômago ou uma violenta dor de cabeça, mas à medida que os meus olhos se adaptaram à luz do Sol, só conseguia pensar, "Vai correr tudo bem." Os músculos deliciosamente doridos não me incomodavam, virei-me para o lado e espreguicei-me, ouvindo a música do chuveiro a correr, com Sean lá dentro. [...]
Estava de casaco e gravata em vez da farda. "Vai comigo para o tribunal", pensei, começando a sorrir de dentro para fora. [...]
- Posso estar pronta daqui a quinze minutos.
Sean ficou imóvel a meio do processo de te tapar com um cobertor.
- Calculei que fôssemos em carros separados - hesitou. - Tenho de encontrar-me com o Guy Booker antes.
Se ele ia encontrar-se com Guy Booker, isso queria dizer que ainda pensava em testemunhar a favor de Piper.
Estivera a mentir a mim própria porque era mais fácil do que enfrentar a verdade: sexo não é amor e um simples paliativo de uma noite não podia remediar um casamento desfeito.
- Charlotte? - disse Sean, e apercebi-me de que me fizera uma pergunta. - Queres panquecas?
Tinha a certeza de que ele não sabia que as panquecas eram dos bolos mais antigos da América; que no século XVIII, quando não havia fermento, as faziam crescer batendo os ovos para incorporar ar na massa. Tinha a certeza de que ele não sabia que já havia panquecas na Idade Média, quando eram servidas na Terça-Feira de Carnaval, antes da Quaresma. Que se a grelha estivesse demasiado quente, as panquecas ficavam duras e elásticas; e que se estivesse demasiado fria, ficavam secas e duras.
Também tinha a certeza de que não se lembrava de que o primeiro pequeno almoço que lhe servi como sua mulher foi de panquecas, quando regressámos da lua-de-mel. Fiz o polme e verti-o para um saco, cortando-lhe um dos cantos e utilizando-o para dar forma às panquecas. Servi a Sean uma pilha de corações.
- Não tenho fome - disse eu."

JODI PICOULT, in "Frágil"


Se assim fosse era fácil demais. Se um beijo começasse por resolver vidas, então que coisas não se poderiam deixar de esperar? Mas nem no livro foi assim, nem na vida real poderia ser. Ou podia? As coisas mudam porque de um momento para o outro repensamos uma ideia que sempre rejeitámos? Como um estalar de dedos, muda-se assim?

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