sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

Port-au-Prince, Haiti

Deixei a minha lapiseira esquecida em casa, o que me irritou profundamente.

Ridículo, porque...

Acabei de ver uma criança, com 15 dias, e a vida a fugir-lhe. Realmente, não houve ainda possibilidades de fazer chegar ao Haiti medicamentos para ajudar os que mais precisam. Compreende-se? É que na minha cabeça não há forma de processar tal informação.
Como é que se nega a vida assim?

Pertencemos a uma sociedade mais do que evoluída, temos rios de dinheiro que correm à mesma velocidade a que o sangue que me desliza nas veias. Maior até, arrisco-me a dizer.
Fazem-se milhões nos segundos que demoro a estalar os dedos; os mesmos três segundos a que morre uma criança algures no mundo com sida.
Não devia ser irreal o que mostram ali naquele ecrã? Um país consegue ser assim tão pobre que nem meios tem para andar na rua a salvar as suas pessoas entre os escombros? Um país que nem tem planos de emergência para situações como esta? Um país que nem tem capacidade para tirar um cadáver da rua, que sem culpa nenhuma cedeu à brutidão da natureza?
Esse dinheiro de nada serve agora. "A água é a moeda."

Pensei que viviamos num mundo responsável por assegurar a segurança dos que mais precisam. Sempre me pareceu que sim, mas afinal ainda não se pensa nisso com antecedência. Começo a perder a esperança!
Estão todos sempre à espera da desgraça, da devastação. Depois a segurança, a ajuda.
Ajudamos os que mais precisam, mas em tempos de crise. Deve ser suficiente.

Por hoje já nem havia forma de deixar que a ajuda entrasse no país. Os aviões estão no ar à espera que exista condições para aterrarem e a rezar para que o combustível não termine antes disso. Há pessoas na rua a morrer à fome. Há sangue por todo o lado, a tentar redimir-se com o colorido que oferece à destruição. Ainda estão edifícios a cair, a desmoronar-se por cima de pessoas que estavam talvez a cinco pedras de se conseguir fazer ouvir; agora morrem.

A rua transformou-se numa casa comum. Ornamentos? As árvores caídas, o pó do que se dissolveu em nada, pedras em todo o lado empilhadas de forma aleatória, pedaços de vida incontáveis. Também há dor a preencher as paredes desta casa. Muita.

Ontem 7 mil pessoas foram enterradas numa vala comum, sem serem identificadas. É possivel que aquela criança perdida ande desesperada à procura da família que se encontre entre essas vítimas. Pode ser verdade que aquela mãe já não tenha mais por onde procurar o filho...
Existia uma fila à porta de uma funerária que ainda estava erguida e que ocupava meio quarteirão. As pessoas só queriam enterrar os seus mortos com dignidade.

Para além do cheiro dos corpos em putrefacção que paira no ar e obrigada as pessoas a cobrirem a cara, diria que é o mundo que deve cobrir a cara pela vergonha que eu espero que tenha. A putrefacção maior é para mim a dos que nunca foram capazes de ajudar paises como este a erguerem-se da pobreza e evitar que situações limites como esta acontecessem.

O tempo urge, pode ser que agora já tenham acordado.

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