quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

"A aparência do silêncio ou o silêncio aparente"

Na sequência de uma aula de uma cadeira da faculdade, foi-nos proposto produzir uma reflexão. Essa aula foi absolutamente diferente de qualquer outra, porque sem qualquer aviso prévio o professor sentou-se e não pronunciou qualquer palavra! O objectivo da aula era atingir o silêncio, tudo isto enquanto o professor escrevia, de tempos a tempos, poemas de Eugénio de Andrade sobre este tema. Transcrevo aqui a maior parte dessa minha reflexão porque é urgente reconhecer no silêncio uma verdadeira forma de comunicação!


[...]
A sala, uma tela em branco, ia sendo povoada aqui e ali por palavras vazias de significado. Estas palavras, menores do que a intenção queria, não eram suficientes para oferecer à aula qualquer significação. Não, muito longe disso. O único lugar que ocupavam era o de intrusas. Os olhares, no espaço incansáveis, eram por ali imensos, curiosos, perplexos, confusos, intimadores e principalmente incómodos. É fascinante como o som mais inaudível se torna para nós o mais perturbador de todos. Intrigante, era o que eu mais pensava da aula.

Sinto quase vergonha de pertencer a uma sociedade moderna em que vivemos diariamente acostados aos meios de comunicação e aderimos ao frenesim de todas e mais algumas facilidades que a ciência nos proporciona para procedermos ao processo que é comunicar. E há dias em que me incomoda a necessidade quase justificada de verbalizarmos tudo quanto sentimos e experienciamos com os que nos rodeiam, porque tudo isso nos faz perder a noção da importância do silêncio. E isto porquê?

A dificuldade de atingirmos um estádio de mutismo advém principalmente do facto de com o silêncio surgir um confronto aliado à introspecção.

Se as palavras são um esconderijo para nós, o silêncio pode trazer a vulnerabilidade que todos tentamos evitar e suponho até que o silêncio que nos envolve seja mais revelador do que a maior fuga inteligível de palavras. Numa dimensão pessoal, o silêncio faz-nos olhar para nós e obriga-nos a lidar com todas as nossas vivências sejam elas positivas ou negativas e, em função disso, gerar boas recordações, nostalgia e saudade ou vai ser responsável por fazer ressurgir más memórias, situações por resolver e continuamente à flor da pele. A esta segunda hipótese a nossa resposta imediata ao silêncio passa pela fuga a estes momentos em que somos obrigados a enfrentar tudo aquilo a que desejamos fugir. E foi o que se passou no meu caso por culpa de um íntimo que prefere simplesmente aceitar estas situações em vez de as assumir, deixando que o tempo actue sobre elas com um carácter atenuador. Pois a cor transparente que colore o corpo do silêncio dá-nos o medo de sermos legíveis aos olhos dos outros e de deixar que todo ele transpareça uma representação fiel ao nosso estado de espírito.

Numa vertente profissional o silêncio é também ele extremamente importante. Se por meio do silêncio atingirmos um conhecimento pessoal, se chegarmos ao nosso “caroço” então estaremos mais aptos para entender os outros. Um paciente nosso, uma criança que precisemos de ajudar pode ter determinadas limitações ou traumas e comunicar connosco sem qualquer verbalização. Ou seja, aí o silêncio vai actuar como uma língua comum entre o psicomotricista e a criança, podendo até fazer a ponte entre o problema e a causa. E por mais inaudível que seja, é genialmente denunciador, sendo uma evidência clara do que pode ser um problema sério e ávido de intervenção.

Não tenho qualquer dúvida quando afirmo que uma inaceitável maioria não reconhece o silêncio como uma forma de comunicar. Mas é, claro que é! Mas por não ser tão comum como as palavras – audíveis, claras, fáceis – o silêncio é de tal forma incompreendido que é essencial que cada um de nós proceda ao seu exercício para desvendar os seus mistérios a um nível individual, pois só assim nos será possível intervir perante um silêncio de alguém que carece de ajuda.

E se a sua presença é inegável então tentemos promovê-lo. Não há palavras que corrompam a autenticidade de um silêncio. Porque o silêncio é a certeza de um (des)equilíbrio entre corpo e mente. Porque o silêncio é comparável a uma porta pela qual se entra e desvenda o mundo que ela encerra. Porque o silêncio constitui a mais bela penetração da intimidade do ser humano.
E como um dia escreveu José de Almada Negreiros, e em jeito de ilustração do que é a verdadeira identidade do silêncio de mãos dadas com a nossa futura vivência profissional, assim termino:
“Dá-me a tua mão p’ra ser tão grande o silêncio…”.

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