Estou a escrever de madrugada e começo a sentir-me fatigado. No quarto ainda é noite, embora o halo receoso que atravessa o vidro fosco da porta tenha vindo a aproximar-se sorrateiramente do cone de luz clandestina que incide sobre a secretária. Há anos que projecto substituir por um rectângulo de madeira aquele vidro desabitado que às vezes me traz a alvorada antes que eu a deseje. Mas vou adiando sempre. Talvez porque espere que, através dele, voltem a coar-se os vultos, o rumor agitado da casa, de quando eu era menino e tinha birras e doenças imaginárias só para negociar a minha anuência aos remédios com a promessa de me deixarem calçar umas botas brancas. Umas botas saloias, tal como as do Zé Fadista — o gaiato mais feliz do bairro, porque vestia e calçava tudo o que nos era interdito. De há muito que o halo não tem sombras nem rumores: apenas a madrugada sem corpo e sem voz, e enorme porque ninguém a preenche.
Fernando Namora, in "Domingo à Tarde", 1961
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