Serpenteia. Presa por uma mão, faz dobras no ar, a correr pelos mesmos sítios que a pressão de ar comanda. Faz a mesma forma que os «S’s». Dá agora ares de uma linha curvilínea. Desenha um «A» sem querer. A realidade aterrou numa fita de cetim que não acredita no fado. Mas o fado escreveu-se nela pelo vento.
Cresceu um arco no céu. Uma sombra! Passou-lhe uma sombra preta de um preto muito muito escuro por baixo. Mesmo reconhecendo-a, Maria quis perguntar-lhe o nome.
- Fantasma – respondeu.
- Estava à tua espera.
- Porquê? Queres que te leve comigo?
- Conheces o caminho?
- Consigo chegar à encruzilhada, até aí não me perco, mas não sei qual o caminho que me leva à ponte.
- Voltaste e ainda não conheces a ponte?
A sombra não sabia com que palavras poderia responder e então calou-se perante a cobardia que lhe estava atravessada na garganta.
- Leva-me lá – pediu-lhe a Maria.
- E se estiver a arder?
- Então sabes. Sempre soubeste.
- Não te posso fazer andar por caminhos em chamas. Não lentamente.
- Mas eu deixei de saber correr.
- Não falo de velocidade, assim nesses termos. Não falo de distâncias e tempo, de quocientes que se calculam um por um e a todos. Não é um quociente igual a esses, fácil. Não são precisas descobrir incógnitas. Não é uma equação, mais depressa seria uma inequação. Não é matemática, só que implica lógica.
- Foste tu que criaste as labaredas?
- Que…
Ela interrompeu a sombra, atrasando a pressa que esperava na resposta.
- As primeiras? Foste tu?
- Eu…
Interrompe-a uma segunda vez:
- Não respondas.
Preferiu não conhecer a resposta, mas logo a seguir pensou que os minutos de conversa difícil pudessem ter mudado um rumo com o qual começava a mostrar sinais de se conformar, de curtos em curtos períodos. Talvez estivesse descrente em si. De qualquer forma, essa descrença nunca foi forte o suficiente para a fazer desligar-se de uma emoção que não crescia em iguais proporções por outros caminhos. Afinal nunca se conformou. A palavra é outra, mas não partilha laços com a conformação e a resignação. Ou as escalas dos sentimentos se tinham alterado e ninguém a avisou, ou então a verdade seria mesmo que todas as alternativas que lhe pareceram possíveis e que ela tomou depois do fim nunca a fizeram sentir que fosse o suficiente e ela vivia insatisfeita, a interrogar-se sobre o «quê?» que faltava em cada possibilidade. Anciosa, Maria preenche o silêncio que ela própria criou:
- A ponte, continua em chamas?
- Estás à espera de uma resposta que conheces.
- Não é de uma resposta que estou à espera.
Fintando sem dificuldades aquele jogo de palavras, a sombra responde-lhe:
- A ponte. Continua em chamas.
- Apagam-se?
- Controlam-se.
Maria deixou cair a fita que ainda segurava na mão direita. Primeiro fugiu-lhe de três dedos, depois ficou suspensa entre o polegar e o anelar. Enfim, escorregou. Para além de não encontrar o suficiente em alternativas falhadas, também não considerou a resposta da sombra suficientemente boa. Virou(-lhe) as costas e deu sete passos em frente. Cuidadosamente, pegou na bainha do vestido que lhe dava imediatamente acima dos joelhos e segurou-a firmemente enquanto se sentava. Esticou as pernas e em silêncio cruzou duas histórias. Fechou os olhos e deixou-se cair para trás, o corpo sobre a relva pautada de pequenas e simples flores selvagens que se iam tentando erguer sozinhas no seio do verde, mostrando serem maiores que a sua fragilidade aparente. O rio corria tranquilo à sua frente, a anular o rubor que se sentou nas suas redondas bochechas. Maria desejou que enquanto ali estivesse se escrevesse uma história em que pontes não fossem precisas. Fantasiou sobre corações reparados e círculos que moldam a perfeição.
Enquanto ela imaginava um amor que deixou de estar escrito, a sombra observava-a encantada. O cabelo parecia-lhe ter caído de forma incomparável sobre o chão, com os seus tons dourados a provocarem o sol. A beleza pendia-lhe da pele, tendo vindo a crescer desde o seu interior. O sorriso, mesmo alterado em intensidade, era de deixar qualquer alguém rendido. O vestido dava-lhe um ar romântico, uma ingenuidade que de falsa não tinha nem uma unha negra. As mãos, essas estavam soltas, prontas a serem pegadas por outras.
- Faz-me um desenho. – pediu-lhe a Maria.
No entanto, não obteve resposta. Não abriu os olhos, não se levantou e nem sequer deu sinais de se importar com o desprezo que lhe foi dado. Em vez disso, continuou a criar imagens na sua mente.
Silenciosamente, a sombra pegou na fita e fitou-a com um olhar de quem esperava que essa mesma fita lhe desse uma ideia de como aceder ao pedido que tinha sido feito.
- Eu gosto de estar aqui. – ouviu-se pela voz da Maria.
A sombra pegou numa pedra e atirou-a ao rio.
- Algum dia te disse como é bom estar aqui?
E ao mesmo tempo, a sombra respondia-lhe com um desenho. Sendo a resposta invisível aos olhos fechados da Maria, ela levou apenas o tempo necessário para ter a certeza do que queria dizer e depois prosseguiu:
- Contigo.
E engoliu em seco.
A sombra esforçava-se por desenhar. Amachucava a fita, deitava-a no chão, mexia-lhe com os dedos e esticava-a para de novo voltar a enrodilhá-la entre as palmas das mãos. Maria não se inibiu com a indiferença que julgava estar-lhe a ser dirigida e continuou a falar, ignorando o leve som que os pés da sombra inventavam ao bater contra as pedrinhas do chão:
- Há um laço que eu desconheço e que me liga ao rio desde sempre. Não sei se é a cor azul que me acalma, se é a tranquilidade com que o meu coração vive neste sítio. Aqui descansamos: o meu coração e eu.
Fez uma pausa para ver se percebia com que armas tinha conseguido aprender a separar as coisas.
- Por aqui encontro marcas na relva e eu finjo que são as nossas. A minha e a tua, antes de te chamares Fantasma. Quando me sentava ao teu colo. Lembras-te? Mas não é só isso. Não me lembro de alguma vez não ter sido feliz aqui. Mesmo nos dias em que eu vinha ter contigo e não dávamos as mãos porque precisávamos de coordenar o coração e a razão, eu nunca deixei de ser feliz. Até nesses momentos eu era feliz. Mesmo quando baixavas os olhos por não conseguires olhar mais para mim do que para o chão, até aí eu era feliz. Coberta de medo, sorria por estares aqui, levantava os teus olhos à altura dos meus, olhava-te e dava-te um beijo. E eu era feliz. Era feliz assim.
Fez outra pausa. Desta vez deixou secar a boca; aquela palavra exigia demasiado. Recuperou e respirou fundo.
- És feliz? – escapou-lhe a derradeira pergunta.
E depois desta frase os seus lábios colaram-se. Maria desconfiou que ficaria ali o resto do dia, incapaz que estava de acreditar que fez de facto aquela pergunta. Retraiu-se, parecia estar a ser engolida, a desaparecer por dentro e a deixar uma frágil casca do lado de fora.
Durante o tempo que ela tinha passado a falar, a sombra notou os seus joelhos a tremer. No primeiro instante em que o nervosismo a atacou, desfez o desenho sem nexo que tinha feito e desenhou, em poucos segundos, algo que parecia estar arrependida de não se ter lembrado antes.
- Acabei – encorajou-se a sombra a contar.
Um arrepio assolou o corpo da Maria desde a cabeça até à ponta dos pés. Devagarinho, abriu os olhos e com o receio que se apertou à volta do corpo, enrolou os lábios um no outro.
- Leva o tempo que quiseres. – tranquilizou-a a sombra, conhecendo fraquezas com que já tinha lidado. A sombra adivinhou os mares em que Maria tinha mergulhado. Pela voz dela conheceu os cantos às histórias que ela imaginava enquanto lhe falava e no seu silêncio, deslindou a dor em que ela pairava.
Nisto, a Maria sentou-se. Flectiu as pernas, juntou-as e apoiou a face nos joelhos. Com os dois braços enrolou o corpo num abraço que de outra forma não conseguiria ter. Ficou nesta posição a olhar o rio, fingindo estar sozinha, ignorando uma presença que nunca deixou de estar presente. Fechou os olhos uma última vez e quando a curiosidade se tornou maior do que ela, levantou-se. Ajeitou o cabelo, fazendo-o cair sobre os ombros para esconder a postura de quem não sabe o que esperar. Por fim, virou-se de frente para a sombra. A sombra estava de pé e olhou-a nos olhos, desviando depois o olhar para a forma que a fita de cetim desenhava no chão. Ela seguiu-lhe o olhar. No chão, a fita de cetim desdobrava-se num círculo perfeito. Ou melhor, quase; e a descrição admite este «quase» porque o círculo não estava fechado.
Não está completo, cresceram-lhe imediatamente as palavras inaudíveis. Um círculo não é um círculo se não estiver fechado. Por mais perfeita que seja a curva. E continuou a falar só para si porque não acreditava que a sombra tivesse outras intenções.
- Deste sete passos.
Maria ergueu a cabeça do chão por culpa da inércia. As palavras da sombra causaram uma diferença demasiado grande entre a velocidade a que a história se vinha a desenrolar e a velocidade a que as coisas começaram a acontecer naquela tarde. Ela tinha de facto dado sete passos, contou-os, mas não sabia que a sombra estava atenta ao ponto de os contar também. Estaria a sombra interessada na sua vida? Por não lhe pertencer a resposta a perguntas como estas, Maria não entendeu onde queria a sombra chegar. Já a sombra, essa avançou com a conversa que tinha começado:
- Deste sete passos quando te afastaste de mim. Sabes o que mede o sete?
A pergunta transformou-se numa retórica.
- O sete mede a renovação. Até a totalidade é expressa por esse número.
Ela não pronunciou uma única palavra, optou por deixar a sombra conduzir o assunto.
- Tu vives à procura de uma renovação que espelhas em pretérito perfeito.
O silêncio dela não se interrompeu, mas era visível que estava incomodada.
- Encontras-te aqui?
- É só uma fita. – começou a Maria, adoptando uma postura que pertenceu à sombra durante tempo demais – É uma fita de cetim que criou um círculo que não quiseste ter tempo de aperfeiçoar.
- Não é só uma fita de cetim. Nem sequer tive a intenção de te representar a ti aqui.
A Maria deu um passo atrás.
- Não é a falta de vontade, a falta de tempo nem sequer a falta de imaginação – A sombra estava a falar de forma tão rápida que nem se conseguiu aperceber de que afastava a Maria. Apontou para o desenho no chão e dirigiu-se a ela com uma pergunta – Não me reconheces aqui?
- A ti?
- Sim.
Maria tentou conjugar a impossibilidade com a esperança. Eram duas coisas que tinha deixado de conseguir articular num momento que vive no passado e após estas palavras continuou a ser incapaz de as medir, mas de uma forma diferente.
- A minha vida: é um círculo, ou quase. É a totalidade incompleta. - admitiu finalmente a sombra.
Aos olhos dela, a sombra começou a ser vestida por cores que já tinha perdido.
- Entendi – confidenciou a sombra, aliviada por ter encontrado um momento em que o receio deixou que ela dissesse numa parca palavra tudo quanto sentia dentro de si à tempo suficiente para ter a certeza de que sabia o que queria.
As cores, que já tinham evoluído do preto e branco para tons sépia, menos dolorosos mas ainda envelhecidos, estavam agora a aventurar-se em espectros coloridos, dos quais Maria já nem se recordava. Corajosa, Maria retirou uma fita que tinha sobre o seu vestido na linha da cintura, desfez o nó do laço que a rematava e desapertou-o. Deu um passo em frente e parou, ele sempre a observá-la. Depois de ter parado deu mais sete passos, os mesmos sete que ele tinha mencionado. Aproximou-se do chão e colocou a fita do seu vestido sobre o círculo que ele desenhara, prestando atenção à forma que ele criou e cobrindo o espaço que ele deixou em branco.
Sim, agora podia dizer-se que estava ali um círculo. Ela olhou para ele com o coração aos pulos e com medo da sua reacção. A resposta ao cruzar de olhares foi um sorriso como ela ainda não (lhe) tinha conhecido. A «ele». Um narrador não se devia arriscar a adivinhar a história, mas a sombra deixou de o ser e transformou-se «nele». O «ele» que já tinha sido.
- Pela mão dos dois.
O círculo, que tinha deixado de o ser e só se mostrava uma forma aberta, voltou a sê-lo pela mão dos dois, como ele acabara de dizer. Até aqui ela não quis iludir-se. Queria, mas não se permitiu. Precisava de ter a certeza que ele queria, precisava que ele lho dissesse a ela, sem intenções escondidas atrás de jogos de letras. Nas palavras dela, pintou-se o desenho dos seus últimos tempos: tempos de espera, de silêncio, de falta de definição. Feliz, ela apenas conseguiu formular uma frase:
- Porque demoraste tanto?
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