Devo confessar que andava curiosíssima para ler esta edição do Jornal Metro e ontem, quando passava os olhos por estas e outras palavras que nele estão manchadas de dor e sede de mudança, doeu-me a consciência. Há tanto por fazer, tanto onde se pode ajudar, tantas mulheres e crianças à espera que lhes digam que sim, que têm o direito de falar, de escolher, de denunciar. Por isso mesmo, comprometi-me a colocar aqui todos os textos que foram publicados naquela edição acerca do tema, em jeito de alertar os que conseguir para o problema. Este, o primeiro, é escrito por uma mulher cujo trabalho é verdadeiramente notório. Falo de Catarina Furtado, a Embaixadora De Boa Vontade Do Fundo Das Nações Unidas Para A População. São as palavras dela as que dão o mote para o que se seguirá nos próximos dias. Espero profundamente que não se sintam indiferentes porque esta realidade é da responsabilidade de todos nós.
"Hoje, como ontem e como amanhã, falo em nome de vidas que não passam de números inscritos em relatórios e estatísticas. Sou hoje, como ontem e, infelizmente amanhã, a cara sem disfarce e a voz não distorcida de muitos testemunhos inaceitavelmente indignos. Só que hoje, Dia Internacional para o Fim da Violência sobre as Mulheres, a esses testemunhos é concebido um espaço privilegiado nas primeiras páginas dos jornais. Sabemos que a violência e a discriminação exercidas sobre mulheres de todas as idades, de diferentes países, religiões e condições económicas, continuam a ser crimes silenciados e tolerados ao ponto de protelarem e até travarem decisões legislativas, programas específicos de prevenção, de apoio às vítimas e dirigidos aos agressores. São adiadas, de forma incompreensível, campanhas de denúncia, projectos de promoção da cidadania, planos nacionais e compromissos mundiais. Só cumprindo o que tem sido prometido, é possível alcançar medidas de protecção social eficazes, igualdade de género, antidiscriminação e não violência. A exploração e o abuso sexual, a violência doméstica, a mutilação genital feminina, o tráfico de seres humanos e os casamentos forçados são talvez as formas mais comuns e identificadas de violência sobre as mulheres.Mas isso não quer dizer que estejam, como deveriam, na ordem do dia das preocupações de todos nós. E se estas, que são as mais reconhecidas, não têm lugar garantido na nossa atenção diária, muito menos o terão as múltiplas formas disfarçadas de discriminação de género: a disparidade no acesso à escola entre rapazes e raparigas, as dificuldades na manutenção das meninas no sistema de ensino, a ausência de programas e cuidados de saúde sexual e reprodutiva sustentáveis, previsíveis e financiados, os entraves económicos para abastecer os serviços de saúde de medicamentos e equipamentos essenciais à saúde materna e infantil; o escasso apoio a organizações não governamentais de mulheres, as taxas elevadas de gravidez adolescente e a feminização do VIH/Sida. Por isso, e porque tenho a oportunidade de constatar no terreno a prática desta injusta realidade, o que penso ser absolutamente determinante para formar uma opinião, tomo o papel de Embaixadora de Boa Vontade do Fundo das Nações Unidas para a População como uma prioridade na minha vida. O desafio para assumir a condição de Directora por um Dia do jornal Metro, quero aproveitá-lo como mais uma oportunidade para dar voz a todas as mulheres a quem as nódoas negras tendem, de forma dolorosa, a atingir a dignidade. Quem nos lê no dia de hoje tem também o ensejo de se envolver, agindo e exercendo a sua responsabilidade cívica, num tempo que passa bem mais rápido e mais distraído do que desejaríamos, mas ainda assim, a um ritmo que podemos, se quisermos, acompanhar. O nosso empenho, que é nossa obrigação, irá a tempo de salvar muitas meninas, raparigas e mulheres. Seria bom que este editorial se transformasse numa conversa. Gostaria de vos dar a conhecer tantas e tantas mulheres portuguesas, guineenses, moçambicanas, cabo-verdianas, são-tomenses, timorenses. Elas justificam todos os editoriais e que são a verdadeira razão para que estas palavras não sejam entendidas como um discurso de circunstância ou de oportunidade com carácter político. Quando ouço, vejo e toco estas jovens emulheres, o coração transforma-se em razão e as obras e projectos que colocam em primeiro lugar os Direitos Humanos, a saúde materna e infantil e o planeamento familiar, são para mim e para todos os técnicos que trabalham na área da cooperação, a bandeira a adoptar. E quando isso acontece, muitos têm sido os resultados obtidos. Já se sabe como evitar, e tantas vezes travar, sofrimentos baseados no género, não faz por isso sentido que as melhores práticas não sejam levadas a cada canto do mundo. Não é possível esperar um futuro mais saudável e sustentável se não se investir namulher, na sua voz, no seu trabalho, na sua capacidade de andar com o mundo às costas. A prevenção tem custos mas que são, afinal, o verdadeiro investimento na vida humana e no futuro de todos os países. Ninguém pode ser considerado dispensável. Em Moçambique, a Gilda, de 17 anos, confessou-me, após ter entrado para um programa de jovens voluntários cujo objectivo é a sensibilização para as questões do HIV/Sida, “Eu não sabia que podia falar, ter uma opinião, manifestá-la e lutar por ela. Pensava que eram só os rapazes. Agora sinto-me mais segura.” Em São Tomé, a Nela, de 20 anos, guardou para si, durante um tempo insustentável, a noite emque foi violada por um polícia e que, por ser rapariga e ter engravidado, foi expulsa de casa pelos próprios pais. Em Cabo Verde, a Janine, de 30 anos, contou-me que já não tinha sequer forças para acreditar que um dia poderia viver sem que o marido, alcoólico, a atirasse contra a parede. Na Guiné, a Mariana, de 17 anos, queria tanto estudar para ser professora mas o casamento forçado, com um homem de 60 anos e as três gravidezes (apenas um filho vivo), já lhe roubaram o seu sonho. “Para sempre”, disse-me ela. Em Portugal, a Amália, de 30 anos, esconde-se numa casa de abrigo, com a filha de quatro debaixo da saia. Disfarça o coração acelerado e esconde um sorriso sem dentes que a impede de arranjar trabalho. Na cara, a violência doméstica torna pública a sua vida íntima. Podia continuar com muitas mais histórias que não quero nunca que fiquem só para mim e para as pessoas da Associação para o Planeamento da Família e do UNFPA que me vão transmitindo tantos conhecimentos. Mas, por agora, deixo à vossa atenção as notícias que se seguem, fruto do trabalho de uma pequena grande equipa do Metro que ao fazer-me este desafio, aceitou também o meu. E com toda a garra de que as lutas pelas grandes causas necessitam. Obrigada pela vossa convicção e pelo precioso contributo enquanto meio de comunicação social. E que amanhã seja também Dia Internacional para o Fim da violência sobre as Mulheres. Assim o queiram.
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- CATARINA FURTADO, Crónica "Violência Sobre As Mulheres", Jornal Metro
25/11/2010