Adoraria fugir deste beco. Seguiria pelo mar, aproveitando a ondulação para encorpar doces movimentos que no fim da viagem me saberão a dança. Da vida deixada p’ra lá do porto, trazer-me-ia apenas a mim, negligenciando todas as caras que não me fizeram ficar. Seria uma ida com aroma a arroz de coco e no topo da ementa uma alegria por devorar. Lá, de pés assentes em terra quente procuraria os mapas que nem sei ler porque turista que se preze não se esquece de os encaixar na algibeira. Cedo me derreteria por entre brincadeiras de meninos de rua e crianças penduradas a braços ossudos e coladas a peitos secos. Invejaria os tempos de meninice daqueles rapazes que sobem às árvores para apanhar mangas, e que perto do céu eles estão! Eu, foragida da minha própria vida, nem consigo andar direito com os pés sobre o meu chão e ainda anseio manter-me firme no ar! Que utopia! Mesmo assim, seguir-lhes-ia os braços sedentos de comida que se confundiam com os galhos da mesma cor. Fossem os meus objectivos tão fáceis de alcançar e não seria preciso ser levada pela imaginação até terras africanas. Comprei-lhe umas frutas, penso, oferecendo-lhe mais do que o pobre preço que a criança julgava justo. Em comparação, decerto que aqueles meticais em excesso lhe fariam mais falta a ele do que ao meu bolso. O menino, visivelmente agradado, pegar-me-ia no braço e conduzido a sua casa. Cabana, digo. Palhota, corrijo. Era uma divisão única que o acolhia a ele e aos seus sete irmãos, ficando a mãe com o espaço equivalente a o de uma adolescente escanzelada e de altura diminuída. O pai? Morto no decurso de uma discussão acesa, contou-me uma jovem vizinha que falava inglês. O coitado defendia o filho cujas mangas dessa tarde tinham sido roubadas por uma criança do povo vizinho. O pai do ladrão, que aos meus olhos teria furtado a fruta para alimentar a sua família esfomeada, não gostou do tom do pai queixoso e com um dente de marfim, a relíquia da família que trazia presa à cintura, feriu-o gravemente para defender a honra do seu menino. O homem viria a sucumbir. Incrivelmente, aquela gente tinha um poder de ultrapassar a dor que me atordoava e ao mesmo tempo inspirava. Sem pais, maridos, filhas ou braços, às vezes pernas pela metade, aquele povo dançava alegre ao som da pura música que criavam com instrumentos dos mais rudimentares que consegui imaginar. Bailavam os seus cabelos ao mesmo ritmo dos membros, numa dança hipnotizante. Fingi-os a cantar canções de esperança, todas elas um hino à vida. Estávamos agarrados numa roda humana, os corpos entrelaçados uns nos outros, ao pôr-do-sol avermelhado.
Foi uma viagem magnífica esta que adorava fazer. Quem sabe, um dia? Por enquanto, posso embebedar-me com o modo de pensar das gentes que imaginei. Inspirador, não?
Foi uma viagem magnífica esta que adorava fazer. Quem sabe, um dia? Por enquanto, posso embebedar-me com o modo de pensar das gentes que imaginei. Inspirador, não?
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