domingo, 30 de maio de 2010

3x5 desta inspiração aqui de cima

«O meu pai nunca me deixou entrar aqui. Devia sentar-se na cadeira de baloiço e olhar do postigo o jardim lá em baixo, o portão, a rua, eu pequena a brincar às fadas com a minha irmã no rebordo do lago. Aos domingos abria a gaveta da cómoda, remexia papéis até escutarmos o tilintar da argola, subia as escadas do sótão a procurar a chave no meio das outras chaves

(tal como hoje, agora que ninguém me proíbe, abri a gaveta, remexi papéis até escutar o tilintar da argola e subi as escadas a procurar a chave no meio das outras chaves)»

ANTÓNIO LOBO ANTUNES, in "Não Entres tão Depressa Nessa Noite Escura"


(e foram estas curtas linhas acima que me levaram a desbravar estas aqui de baixo)

Mergulhada em saudades, abri a gaveta e remexi tudo quanto uma vez coube lá. Procurei a 3x5 nas cores das linhas, em baixo das folhas amontoadas pelo uso. Estaria no meio dos meus devaneios artísticos, por entre curvas e contracurvas, pinceis airosos que pintam formas e sombras que raramente alguém vê. Ah!, lá estava ela! Escondida, meticulosamente embrenhada em coisas das quais me vou esquecendo. Peguei-lhe e olhei-a. Sim, sorri. Sorri e lembrei-me de como foi tê-la. De como não me coibia de olhá-la nos primeiros dias por me deixar conhecer mais uma pequena faceta, um bocadinho mais de uma coisa que me era muito mais do que muito.
Oh malvadeza das sortes! Larguei-a sobre o vidro da mesa. Segundos depois guardei-a longe dali, perto de coisas nas quais raramente toco. Clarifico: guardei-a e a tudo o que trazia atrás. Ajeitei ideias que quase se entrelaçavam em brechas abertas, dobrei melhor algumas estruturas a que aprendi a chamar de cognitivas, soprei o pó de ideais antigos e... E nada. Nada se moveu! Nem uma oscilação microscópica foi capaz de se apoderar de limites que já adquiriram um certo grau de transparência. Estou capaz de acreditar no que nunca tem fim.
Ai de mim!

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