sábado, 21 de março de 2009

Dia Mundial da Poesia, outra vez!

"Menino e moço cedo me levaram os meus Pais a ler poesia. Nesses idos de 40/50, os bolsos dos meus calções andavam abarrotados de encantadas e desatinadas devoções feitas de miragens de cracks de football, das divas e vamps fatais de Hollywood, dos bichos dos rebuçados "vitória" e de versos soltos, colhidos daqui e d'acolá ao deus-dará, cada estirpe agrupada e presa, cada uma a cada uma, por grossos alfinetes subtraídos à caixa de costura de minha Mãe. Começara então a passear curiosamente os olhos pelos livros de poemas e logo me dei à surpresa e ao espanto das palavras encantadas, dadas à estampa e a um obscuro desígnio enleado pelo ritmo compassado da sua música velada. Lia-as em voz alta para melhor as ouvir e descobrir. Daí a um impúnebre versejar foi um ai-que-te-avias: nos meus cadernos escolares e no meu diário íntimo, fechado à chave, dessa idade borbulhosa do armário, as rimas dolicodoces e pueris alinhava-as eu ginástica e o Nemésio, o Cesariny, o O'Neill e tutti quanti, a quem, seduzido e rendido, comecei a tomar o gosto e, mais, a voz de empréstimo, chegando mesmo a usurpá-la quando, em estado de delirante e desejante necessidade sentimental, pretendia exprimir-me e procurar atrair e cativar a mulher amada, melhor dizendo, desejada.
[...]
Desse tempo ainda trago dentro de mim a memória viva de um admirável trecho dos Cadernos de Marte Laurids Brigge de Rainer Maria Rilke que não resisto a transcrever, apesar de extenso:
"...Ah, os poemas são tão pouca coisa quando os escrevemos cedo. Devia-se esperar e acumular sentido e doçura ao longo de toda uma vida, e esta ser tão longa quanto possível, e então, mesmo no fim dela talvez se pudesse escrever dez linhas que fossem boas. Pois os versos não são sentimentos (esses têm-se cedo que baste),- são experiências. Por causa de um verso, tem de se ver muitas cidades, pessoas e coisas, tem de se conhecer os animais, tem de se sentir como os pássaros voam e de saber os gestos com que as pequenas flores se abrem pela manhã. Tem de se poder voltar com o pensamento a caminhos de regiões desconhecidas, a encontros inesperados e a despedidas, que se viam a vir,- a dias da infância ainda por decifrar,..."
[...]
Com o correr dos anos a poesia foi-se-me tornando tão necessária como o pão de cada dia para a boca. Na boca onde o gosto começa. As letras, a palavra, o corpo da sua escrita, passaram a fazer parte da minha respiração. Razão dei então ao genial e travesso Baudelaire quando dele li que "todo o homem saudável pode privar-se de comer durante dois dias - de poesia nunca!" ("L'Art Romantique"). E, já com arraiais assentes em banca de advogado e sob a excelente orientação da mestria tutelar de meu Pai, Luís Veiga, dele ouvi repetidamente o sábio conselho desse monstro sagrado do foro e da literatura que foi Maurice Garçon: "Pour bien plaider, lisez les poètes". Na verdade, é bem-avisado, para quem pretenda bem advogar, o dever de ler os poetas. Não sei se, durante estes 45 anos de ofício, advoguei bem ou mal, creio bem que o fiz razoavelmente porque umas vezes bem, outras mal, mas que li uma miríade de livros de poemas, ai isso li - que me perdoem os jurisconsultos e os jurisperitos o tempo que consoladamente lhes roubei - e o gosto, o conforto, a companhia, a consolaçao e o sortilégio dessas leituras, essa ninguém, mas ninguém mos tira.
[...]
Na língua da poesia, em que cada palavra é cuidadosamente pesada, nunca nada é vulgar nem normal. Nem uma pedra nem uma nuvem, em cima. Nem um dia nem uma noite, depois. E, sobretudo, nem uma qualquer existência neste mundo (Wislawa Szimborska), poetisa que me foi apresentada, em francês, num excelente texto do meu amigo, o excelente, excelentíssimo, João Lobo Antunes.
Talvez por isto tudo e sobretudo pelo que lhe falta, enquanto outros trazem cruzes e medalhas ao pescoço, eu trago sempre um poema no bolso. Sempre.
A cada um, pois então, a sua devoção, o seu colete de salvação."

Miguel Veiga, in Os Poemas da Minha Vida


Ora o excerto que acabei de transcrever faz parte do prefácio do livro acima referido, prefácio esse que assim tinha início:

"O Senhor Honoré de Balzac, que tanto sabia do seu ofício, preceituava no seu "Do uso dos prefácios":

Artigo 1.º - O uso constante dos autores será o de pregar prefácios no começo de todos os seus livros.
Artigo 2.º - O uso do público será o de não os ler e de os encarar como nulos e não acontecidos
."

Pois eu devoro todos os prefácios de cada livro que me aventuro a ler e este não foi excepção! Havia muito mais para transcrever, é um texto belíssimo este que Miguel Veiga escreveu e eu resolvi partilhar, porque hoje é de poesia que falamos! (pena não ser todos os dias, teria o Homem muito mais a ganhar!)

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