segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Era isto...

A casa vazia e o intelecto quieto.
Já pedi que me deixassem as mensagens no correio, as vozes à porta. De onde me levanto não trago sombra sequer.
Era isto
A falta de balanço de que já não me lembrava
A carcomida vontade que um dia já tinha vestido.
Hoje já não te lembras de nada, como se
Como se os dias se condensassem em nuvens que voam para longe.

sábado, 29 de outubro de 2011

«Estás preparada?»


"(Prepara-te bem porque daqui a pouco)
e por mais que quisesses tentar já nem forças para tentar, simplesmente
Não te lembras
Não te lembras
Podes continuar a circular, tocar nas coisas, avaliar o peso dos objectos,
olhar mil vezes fotografias que te mostram, dizem-te nomes que não reconheces, simplesmente
Não reconheces
(Estás preparada?)"

- RODRIGO GUEDES DE CARVALHO, in "Mulher em Branco"

«Velhas e cansadas de correr»

"O amor não tem portas que possamos abrir e fechar, nem passagens secretas para um sótão onde possamos fazer férias dele. Toma conta de tudo em nós, envolve-nos como um lençol de tédio, sedoso, infindo. Ninguém fala deste tédio sublime, tão contrário à acção e à eficácia, imóvel inimigo do progresso do mundo. Só no trono do sonho, iluminado e funesto, o amor interessa. Prolongada, a vida torna-se demasiado curta e o amor ganha o ritmo da chuva que bate leve, levemente.
Habituámo-nos a tratar os amores como electrodomésticos: quando se escangalham, vamos ao supermercado comprar um novo, igualzinho ao que o outro era. Consertar? Não compensa: o arranjo sai caro, além de que nunca se sabe muito bem onde procurar a peça que falta. Substituímos a eternidade pela repetição, e o mundo começou a tornar-se monótono como uma lição de solfejo. Tememos a maior das vertigens, que é a da duração. Mas no fim de cada sucesso há um cemitério como o de Julieta e Romeu, apenas com a diferença da aura, que é afinal tudo. As pessoas morrem cada vez mais velhas e cansadas de correr, e os seus cadáveres tensos soçobram de ridículo sobre a terra das suas efémeras conquistas."

- INÊS PEDROSA, in "Nas Tuas Mãos"

sábado, 22 de outubro de 2011

Meaningful


I love to hear jazz, blues and soul. By the silent night, the same way it absorbs me while it is being played, the simple image of you appears to invite me losing track on a trip we had never planned.

Do you know how many times am I lost in meaningless things, looking at the window and having the thought of you warming me?

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

Repetição

Dos que mais gostei de escrever:


Ela estava completamente alheada do que a rodeava. Só a brisa ainda a fazia sentir-se acordada. Enquanto as ondas rebentavam, revoltas, e as crianças corriam em direcção à meta, ela permanecia imóvel, fitando o horizonte, a linha tão imaginária quanto a sua felicidade.
Havia dias desde o último sorriso que se lembrava de esboçar: natural, sincero, espontâneo. Lembra-se bem: ele olhou para ela, afastou a madeixa de cabelo que lhe escondia a expressão e disse, no tom mais apaixonado que ela lhe conhecia, que a amava. Depois, colou os seus lábios à sua pele num beijo demorado e ternurento. Foi aí que sorriu, imediatamente antes de ele se afastar.
Foi desde essa noite, em que o frio característico se opunha ao calor dos sentimentos, que ela se encheu do maior vazio que já havia experimentado. Passava os dias ali, na praia, na esperança de ter o mais curto pousar de olhos sobre a figura dele. Em boa verdade, não sabia o que fazer se o visse, se devia falar, dirigir-se a ele ou continuar o que ele começou.
O adeus. Foi o que de mais ingrato ele lhe poderia oferecer. Naquele momento, sentiu uma dor desmedida na voz dele e por muito que agora se arrependesse por não ter tentado impedi-lo, na altura não foi sequer capaz de pensar. A dura realidade tomou-a de assalto e ela sucumbiu a um terrível estado de incredulidade. E, na impossibilidade de se debater, viu-o partir.
Agora era tarde, mas ela era incapaz de deixar libertar o sofrimento que ele lhe provocou. Porque se assim fosse, em breve ela esqueceria o rosto, o cheiro, a imagem, os sentimentos. Deixar-se sofrer obrigava-a a recordar cada momento que haviam partilhado. E assim, tudo o que restava da sua história era mais lentamente apagado. Os contornos iriam permanecer, tempo nenhum os poderia apagar, mas tudo o resto, todos os pormenores, mais ou menos importantes, iriam involuntariamente abandoná-la.
E ele? Seria ele indiferente a todos os detalhes que dela pudesse perder? Estaria, ou não, disposto a deixá-la afogada na maior das dores? No maior dos sofrimentos? Até onde estaria ele disposto a permitir o fim do que nunca deveria sequer ter terminado? Não, ela não fazia a mais pequena ideia. E sem querer, estas dúvidas ocupavam-na durante todo o dia, a qualquer que fosse a hora.

Grey's Anatomy


"There's a reason I said I'd be happy alone. It wasn't 'cause I thought I'd be happy alone. It was because I thought if I loved someone, and then it fell apart, I might not make it. It's easier to be alone. Because what if you learn that you need love? And then you don't have it? What if you like it? And lean on it? What if you shape your life around it? And then... it falls apart? [...] Losing love is like organ damage. [...]"

02/04

Apresentado em fragmentos:


Dói-me o corpo da distância, a pele inundada de saudades.
[...]
Quando se concretiza a utopia que descrevem os livros, o sentimento que afasta o nosso papel de um monólogo, sentimo-nos completos. Estou inteira, nenhum fragmento se prende ao passado porque me reuniste no presente.
[...]
Diz-me se é em mim que vês a «cidade onde o amor encontra as suas ruas». De imediato, digo-te que a vejo em ti sem hesitações ou amarguras que me atropelem.
[...]

terça-feira, 18 de outubro de 2011

10

Daqui a 2 seriam 12.
Nesses dois e depois, estaria muito feliz.

«Inventa o gosto insípido»

"Vai passar, tu sabes que vai passar. Talvez não amanhã, mas dentro de uma semana, um mês ou dois, quem sabe? O verão está ai, haverá sol quase todos os dias, e sempre resta essa coisa chamada “impulso vital”. Pois esse impulso às vezes cruel, porque não permite que nenhuma dor insista por muito tempo, te empurrará quem sabe para o sol, para o mar, para uma nova estrada qualquer e, de repente, no meio de uma frase ou de um movimento te supreenderás pensando algo como “estou contente outra vez”. Ou simplesmente “continuo”, porque já não temos mais idade para, dramaticamente, usarmos palavras grandiloqüentes como “sempre” ou “nunca”. Ninguém sabe como, mas aos poucos fomos aprendendo sobre a continuidade da vida, das pessoas e das coisas. Já não tentamos o suicidio nem cometemos gestos tresloucados. Alguns, sim - nós, não. Contidamente, continuamos. E substituimos expressões fatais como “não resistirei” por outras mais mansas, como “sei que vai passar”. Esse o nosso jeito de continuar, o mais eficiente e também o mais cômodo, porque não implica em decisões, apenas em paciência.
Claro que no começo não terás sono ou dormirás demais. Fumarás muito, também, e talvez até mesmo te permitas tomar alguns desses comprimidos para disfarçar a dor. Claro que no começo, pouco depois de acordar, olhando à tua volta a paisagem de todo dia, sentirás atravessada não sabes se na garganta ou no peito ou na mente - e não importa - essa coisa que chamarás com cuidado, de “uma ausência”. E haverá momentos em que esse osso duro se transformará numa espécie de coroa de arame farpado sobre tua cabeça, em garras, ratoeira e tenazes no teu coração. Atravessarás o dia fazendo coisas como tirar a poeira de livros antigos e velhos discos, como se não houvesse nada mais importante a fazer. E caminharás devagar pela casa, molhando as plantas e abrindo janelas para que sopre esse vento que deve levar embora memórias e cansaços.
Contarás nos dedos os dias que faltam para que termine o ano, não são muitos, pensarás com alívio. E morbidamente talvez enumeres todas as vezes que a loucura, a morte, a fome, a doença, a violência e o desespero roçaram teus ombros e os de teus amigos. Serão tantas que desistirás de contar. Então fingirás - aplicadamente, fingirás acreditar que no próximo ano tudo será diferente, que as coisas sempre se renovam. Embora saibas que há perdas realmente irreparáveis e que um braço amputado jamais se reconstituirá sozinho. Achando graça, pensarás com inveja na largatixa, regenerando sua própria cauda cortada. Mas no espelho cru, os teus olhos já não acham graça.
Tão longe ficou o tempo, esse, e pensarás, no tempo, naquele, e sentirás uma vontade absurda de tomar atitudes como voltar para a casa de teus avós ou teus pais ou tomar um trem para um lugar desconhecido ou telefonar para um número qualquer (e contar, contar, contar) ou escrever uma carta tão desesperada que alguém se compadeça de ti e corra a te socorrer com chás e bolos, ajeitando as cobertas à tua volta e limpando o suor frio de tua testa.
Já não é tempo de desesperos. Refreias quase seguro as vontades impossíveis. Depois repetes, muitas vezes, como quem masca, ruminas uma frase escrita faz algum tempo. Qualquer coisa assim:
- … mastiga a ameixa frouxa. Mastiga , mastiga, mastiga: inventa o gosto insípido na boca seca …"

- CAIO FERNANDO ABREU

domingo, 16 de outubro de 2011

Daqui a nada?

Daqui a nada conto-te porquê.
Abro a ponta esquerda do laço, deixo de preferir que adivinhes e passo as palavras para o meu lado.
Dói-me esconder essas palavras, fechar-me em cinco dobras que me encobrem no que fica por dizer. Sem sal, fico-me no canto por baixo de emoções escondidas que estás por conhecer. Proibi-me de te cansar a ouvir o que sou fora das nossas portas.
E estranho, estranho como alguém que prefere as palavras como forma primordial de expressão, passa a esconder-se entre e atrás delas, na esperança de que a não observem do alto da sua confiança muito tremule.
Este controlar do sentir facilmente se pode tornar numa tarefa apetecível, mas até que ponto? Deixar-se levar sabe tão bem. Sabe… a abraços matinais que saem de uma noite passada entre lençóis.
Mas quem sabe quanto tempo é o tempo desse «daqui a nada»?

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Amor
a-m-o-r
a-mor
mor-a onde?

«Transição»

Às tantas esquece-se a pastilha na boca. Voa o pensamento (milhares de pensamentos) para cruzamentos que não aparecem no mapa, como hipóteses apresentadas antes que o tempo as pudesse prever.
Perante a multidão, o corpo comporta-se como verdadeiro calabouço de onde a vontade não consegue escapar. Tenta-se. Tenta-se de facto. Vê-se a vontade debatendo-se contra grades velhas, rugas de ferrugem e calos sobrepostos, atirando-se até contra paredes gastas por fendas escavadas pela luta inglória. Não há nada que a faça libertar-se, e se estiver para vir parece estar muito longe.
Encontra-se a pequena exalando pingos de esforço, imóvel quando a palavra é «transição». E até este momento nenhum estímulo provoca mudanças de estado ao corpo que a prende. Pois uma palavra não consegue esgueirar-se por entre os lábios carnudos a cor de romã pincelados e os olhos apresentam-se como espelhos da multidão que a rodeia e insensíveis ao reboliço que ali vai no interior.

quarta-feira, 5 de outubro de 2011

«Alvo»

"Por uma vez conta como o corpo se ajusta à superfície das tuas palavras. Fala de um depois anterior, desse sono demente na fissura da luz; do violento voo ou ferida cíclica, a ausência excedendo-se na pele quando a desoras perfumas minhas mãos. Estende-se o calor aos lábios, o verão simula a duração no verso, circula a água, vigorosa, no fundo do poço até desaparecer na cama muda.
Nada é o que parece, lembra-se o que se esquece e eu digo os dedos descalços dissolvem em tua boca o mel à flor dos destroços. Olha-me: deita o olhar em meu vestido, tira-o num gesto ébrio e precipitado como a um prisioneiro, os peixes sobem lestos no lago imoderado e a noite volta, lenta, adormecida. Dou-te o que não tenho – a história de um rio exultante a explodir na boca em versão romântica, poema sem trágicos sulcos ou fala completa. E tu, tu dás-me o que sou: metáfora doendo-se alto onde acaba o texto."
- ANA MARQUES GASTÃO, in "Nós/Nudos"