"Levantou-se de repente. Como se de um pesadelo. A cabeça pesada, os membros torpes, as articulações ferrugentas da insónia. E o dia que nunca mais irrompia pelos espaços regulares da persiana, desenhos milimétricos na escultura rígida da janela.
Este não é o meu quarto e estou farto de hotéis. Uma mulher respira devagar por trás de si. Amo-a? Mexe-se ligeiramente, muda de posição, murmura palavras fugidas de sonhos desfeitos, volta a adormecer, a boca ligeiramente mais aberta, a mesma respiração aquática. Que faço eu aqui?
Agma, no pescoço, na cara, as mãos em concha, duas três quatro vezes, lavar-me, começar a limpar-se por ali, como se restassem nas pálpebras e nos lábios pedaços apodrecidos da goma da resignação. Sentiu, enquanto os olhos fechados se lembravam das corridas de bicicleta entre a Apúlia e ofir, e a boca reaprendia a pouco e pouco a arquitectura difícil dos sorrisos abertos da infância, a mulher que se remexia no seu sono inquieto, Falas tanto de noite, Dizes tanta coisa que não percebo, que me apetece logo inventar aí, nesse espaço a que definitivamente não pertenço a cova escondida do entendimento que definitivamente não logramos alcançar, um raspar mais brusco dos lençóis, um bocejo enorme, claro, a faísca de um isqueiro, claro, a voz que já não pertence ao sonho clara.
- Porque é que acordaste tão cedo?
Porque é que me deitei tão tarde, e contigo, uma vez mais contigo, um corpo à deriva, a jangada da tua sedução, há quanto tempo?
- Podes responder-me quando falo contigo?
Cala-te, estou a redescobrir o prazer de fazer a barba, a lâmina a viajar os contornos do queixo, a alternância agradável da água quente e da água fria, estou bem, estou quase limpo. Cala-te.
- Estava cheio de calor, dormi mal.
- Porra, eu dormi como uma lontra...
E um novo bocejo (porque é que os conto?), imaginou-lhe de costas o hábito de prender o cigarro entre o anelar e o médio, a cinza que se começa a inclinar, a maneira distraída de coçar a nuca. Ainda bem. Que dormiste bem, quero dizer. Voltou ao quarto acalmando a irritação da cara com palmadas sábias de after shave, num gesto que aprendeu com os cow-boys da infância (quando eu for grande e fizer a barba), reparou na própria sombra atapetada na alcatifa pela radiação falsa da luz da casa de banho, adivinhou os contornos das coxas nuas, dos seios em desmazelo agora que a chama do isqueiro se juntava aos primeiros raios de sol que espreitavam pelas feridas da persiana, adivinhou a própria boca sem nada para dizer dali a pouco, sem qualquer palavra na profunda arrecadação da linguagem que conseguisse traduzir o que lhe ia por dentro, realmente por dentro, doridamente por dentro, sem nada para dizer ou responder.
- Então já não deixas crescer a barba?
Tomar a iniciativa de dizer quando lhe pareceu de repente que eram horas de partir, de abalar, de romper de vez juntamente com a luminosidade teimosa da manhã, um salto sem regresso, uma viagem sem retorno possível, atirou a toalha para cima da cama, abriu os pesados cortinados de veludo. Ei, não abras essa merda, olhou finalmente a mulher com os olhos engessados da decisão, se calhar sorriu, se calhar deu-lhe gozo feri-la no seu torpor de bicho nocturno, abriu as persianas, a janela, a porta da varanda, abriu tudo o que havia para abrir, deixar sair o cheiro a mofo, a podre, continuar a limpar-se.
- Vou-me embora.
- Foda-se, acordaste mesmo de cu para o ar. Ao menos dá-me tempo de me vestir.
Não percebeste nada, continuas a não perceber nada, não é do hotel que me vou embora, não é deste quarto excessivamente luxuoso, excessivamente impessoal como tu me pareces nesta manhã, como tu finalmente pareces, vou-me embora de mim, repara, olha para mim, não acredito que não mo leias nos olhos, na transpiração aflita das mãos, não acredito que não notes, que não te apercebas e, no entanto, não vou nada embora, sei-o, vou permanecer para sempre grávido dos dias que não me atrevo a relembrar, a fazer voltar, às tantas, merda, não conseguirei nunca ir-me embora, nunca partir como se inventasse nesse momento eternamente adiado a alegria refrescante da chegada, anda, veste-te lá, vou descendo, vou pagando a noite que não tive, e foi como se ao dirigir-se ao empregado alto e curvado da recepção que o cumprimentou numa subserviência pegajosa, se dirigisse de facto à mulher que naquele preciso momento (adivinhava-o) compunha em frente ao espelho da casa de banho o caos escuro dos cabelos, indignada por ter sido selvaticamente arrancada a conforto celular do sono da manhã, resmungando impropérios com a boca cerzida que (de certeza aperta os ganchos trazidos das toilettes da adolescência, tirou a carteira do bolso do blusão (Fica-me mal porque continuo a usá-lo?), olhou novamente o recibo que a cegonha lhe estendia, e pensou numa soma elaborada pela mulher, a multiplicação imparável de uma solidão sem remédio.
Ouviu a campainha do elevador que aterrava na recepção, pressentiu sem olhar a mulher a empurrar a porta, o cabelo apanhado na nuca com um elástico furioso, os longilíneos óculos escuros repletos de acordes estridentes sofregamente engolidos numa maratona rockeira do Pavilhão Infante de Sagres, deixou uma nota mais pequena de gorjeta, pôs também os óculos, o tique obrigou-o a verificar a fralda da camisa, e atravessou a porta de vidro com a sensação de ter rachado algo que deveria ter tido a coragem de quebrar."
- RODRIGO GUEDES DE CARVALHO, in "Daqui a Nada", 1992, Contexto