domingo, 20 de fevereiro de 2011

Minutos de desassossego II

"Dói-me qualquer sentimento que desconheço; falta-me qualquer argumento não sei sobre o quê; não tenho vontade nos nervos. Estou triste abaixo da consciência. E escrevo estas linhas, realmente mal-notadas, não para dizer isto, nem para dizer qualquer coisa, mas para dar um trabalho à minha desatenção. Vou enchendo lentamente, a traços moles de lápis rombo - que não tenho sentimentalidade para aparar - , o papel branco de embrulho de sanduíches, que me forneceram no café, porque eu não precisava de melhor e qualquer servia, desde que fosse branco. E dou-me por satisfeito."
- BERNARDO SOARES, in "Livro do Desassossego"

Minutos de desassossego

"Era a ocasião de estar alegre. Mas pesava-me qualquer coisa, uma ânsia desconhecida, um desejo sem definição, nem até reles. Tardava-me, talvez, a sensação de estar vivo. E quanto me debrucei da janela altíssima, sobre a rua para onde olhei sem vê-la, senti-me de repente um daqueles trapos húmidos de limpar coisas sujas, que se levam para a janela para secar, mas se esquecem, enrodilhados, no parapeito que mancham lentamentamente."

- BERNARDO SOARES
, in "Livro do Desassossego"

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

Fotocópia

Sou o que se chama de pessoa impulsiva. Como descrever? Acho que assim: vem-me uma idéia ou um sentimento e eu, em vez de refletir sobre o que me veio, ajo quase que imediatamente. O resultado tem sido meio a meio: às vezes acontece que agi sob uma intuição dessas que não falham, às vezes erro completamente, o que prova que não se tratava de intuição, mas de simples infantilidade.
Trata-se de saber se devo prosseguir nos meus impulsos. E até que ponto posso controlá-los. [...] Deverei continuar a acertar e a errar, aceitando os resultados resignadamente? Ou devo lutar e tornar-me uma pessoa mais adulta? E também tenho medo de tornar-me adulta demais: eu perderia um dos prazeres do que é um jogo infantil, do que tantas vezes é uma alegria pura. Vou pensar no assunto. E certamente o resultado ainda virá sob a forma de um impulso. Não sou madura bastante ainda. Ou nunca serei.

- CLARICE LISPECTOR, in "Aprendendo a Viver"

Uma quase antítese

"Lembro-me de lhe ter dito, Pareces um cisne e ela respondeu a limpar a boca às costas da mão, Sou um cisne. Sou o cisne da história do tio Zebra, aquele que parecia um intruso no meio das aves do lago, um patinho feio cheio de sonhos à espera que lhe caíssem aquelas penas pardas e baças, curioso de saber o que estaria por debaixo. Ainda tenho muitas penas baças, disse ela e sentou-se na borda da mesa de madeira grossa com o pucarinho na mão, arredondou a anca ao inclinar-se para analisar os próprios tornozelos, sem perceber a minha perturbação deslumbrada. Não te vejo nenhuma pena baça, disse eu à falta de melhor, o que eu queria dizer-lhe era Amo-te, desejo-te, morro de cada vez que me olhas, as tuas mãos macias como asas de pena doce despertam em mim o som de mil cordas de violino, ou é o rumor branco do meu sangue a soluçar."

- ROSA LOBATO DE FARIA, in "Os Pássaros de Seda"

Desejo de vida

Aproveitei a tarde para a visitar: fui ver a avó, a que do avô confessa ter saudades. Vi o peso da ausência nas rugas da face, nas pregas da alma. E ainda assim, a vontade de continuar por cá.


"Tu estavas, avó, sentada na soleira da tua porta, aberta para a noite estrelada e imensa, para o céu de que nada sabias e por onde viajarias, para o silêncio dos campos e das árvores assombradas, e disseste, com a serenidade dos teus noventa anos e o fogo de uma adolescência nunca perdida: "O mundo é tão bonito e eu tenho tanta pena de morrer."Assim mesmo. Eu estava lá."

- JOSÉ SARAMAGO, in "As Pequenas Memórias"

sábado, 5 de fevereiro de 2011

Utopia na Praça

Não consigo criar exactamente um texto. Preciso de me empurrar para a escrita porque de um propósito me despi.

Facilmente passei de uma confessa convertida a uma quase perfeita desinteressada. Digo-vos que há forças que puxam, puxam, contorcendo os dedos, ferindo as mãos por cicatrizar. Elas puxam, prendem, pegam, apertam. Elas arrancam as raízes mais fracas, as que por falta de direcção, lá iam pelo caminho das outras!
Não que fosse algo que eu desconhecesse, no entanto era tudo o que eu não avistava. E de repente, pela noite fresca a chamar o Inverno, entre gente e pessoas de copo na mão, ai a algazarra daquelas ruas miudinhas!, aparece uma luz. Uma luz. Uma pequena, tímida, luz. Mas chama. A luz.
E entre o que estava por vir e o que nunca se esperou que acontecesse, surgiu o que eu apelidava de utopia. Debaixo da chuva, do medo, de uma casa daquela Praça à porta do Bairro.


ARCTIC MONKEYS - The Lovers